|
Próximo Texto | Índice
Editoriais
editoriais@uol.com.br
Visões do Brasil
Em conferência na Flip, Fernando Henrique valoriza Gilberto Freyre e relativiza interpretações dogmáticas acerca da história do país
Algumas desconfianças cercaram a conferência de abertura da
Flip, encontro literário realizado
em Paraty, litoral sul fluminense,
na qual coube a Fernando Henrique Cardoso discorrer sobre Gilberto Freyre -o célebre autor de
"Casa-Grande & Senzala", homenageado pelo evento.
Em dias de disputa eleitoral,
imaginava-se que o sociólogo poderia deixar-se dominar pelo ex-presidente e transformar a noite
cultural em ocasião para proselitismo político. Especulava-se,
além disso, sobre uma suposta
adesão pública do ex-professor da
USP ao mestre de Apipucos, sempre visto com reservas no ambiente universitário paulista, e definitivamente rechaçado ao manifestar apoio à ditadura militar e ao
colonialismo salazarista.
Nenhuma impropriedade no
entanto aconteceu. Em que pesem
duas ligeiras referências aos dias
atuais, Cardoso não usou a Flip
como palanque -e tampouco
aderiu a opiniões preconceituosas
e visões autoritárias do autor. Não
deixou, porém, de valorizar, com
clareza e desenvoltura, sua contribuição fundamental para a compreensão da sociedade brasileira.
Num tempo em que autores,
conservadores ou de esquerda,
voltavam suas atenções para o papel formador do Estado, Freyre
elegeu a família patriarcal como o
principal objeto de sua análise.
Também contrariou perspectivas
racistas comuns à época ao ver na
mestiçagem, associada à colonização portuguesa, um traço distintivo -e positivo- não apenas
da sociedade, mas da cultura brasileira. Ao fazê-lo, ofereceu ao país
uma explicação original e, para
muitos, um mito.
Aquilo que o conferencista
identificou como a tese central de
Freyre, a vigência no Brasil de
uma dinâmica que poderia ser
chamada de "equilíbrio de contrários", é a base para a noção de "democracia racial", expressão que
na realidade não está presente em
"Casa-Grande & Senzala".
Para Cardoso, tal equilíbrio pode ser visto como um mito, mas
não no sentido de uma narrativa
que serve de anteparo à compreensão da realidade. Seria, em
seu entender, um "mito heurístico", explicativo, uma vez que o
autor vai confirmá-lo em estudos
acerca de situações reais, como as
relações familiares, o cotidiano
doméstico, os jogos, a culinária, o
sexo e a religiosidade no âmbito
da Colônia. Situações, aliás, sobre
as quais as interpretações de inspiração marxista pouco tinham
-e ainda têm- a dizer.
Fiel a sua formação uspiana,
Cardoso apontou, ao final, Sérgio
Buarque de Holanda, contemporâneo de Freyre, como o melhor
contraponto à obra do pernambucano. Com efeito, no autor de
"Raízes de Brasil", a valorização
da esfera privada e o "equilíbrio
de contrários", essa espécie de
dialética que não chega às últimas
consequências, seriam vistos como obstáculos à vigência de relações e regras impessoais e, portanto, da plena democracia.
Num momento em que o debate
político no Brasil tem fomentado
polarizações e antagonismos sectários, a conferência de abertura
da Flip serviu como um convite à
distensão intelectual e à relativização de visões dogmáticas acerca da história do país.
Próximo Texto: Editoriais: Haddad e o Enem
Índice
|