|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Saudoso Adoniran
SÃO PAULO - O Matogrosso e o Joca; o Arnesto; o Nicola; João Saracura, fiscal da prefeitura; sargento
Oliveira, aquele que diz em "Um
Samba no Bexiga": "Não tem importância/ Vou chamar duas ambulância". E arremata: "Calma,
pessoal, a situação aqui tá muito cínica/ Os mais pior vai pras Crínica...". O leitor já terá notado, este é
o mundo de Adoniran Barbosa.
Festejam-se hoje cem anos do
seu nascimento. Adoniran nasceu
como João Rubinato, em Valinhos.
Consta que foi em 1912. A certidão
foi adulterada para que ele, ainda
garoto, pudesse trabalhar. E ficou.
Começou como entregador de
marmita em Jundiaí. No programa
"Ensaio", da TV Cultura, de 1972,
Adoniran conta, orgulhoso, que
costumava roubar um ou dois bolinhos das marmitas que levava. "Já
era malandrinho", ele diz, e logo se
corrige: "Não era malandragem,
era fome. Malandragem é fome".
A figura do malandro como
aquele que dribla condições sociais
adversas, sempre no fio da navalha, é um dos lugares-comuns do
samba. Em Adoniran, esse mote ganha vida por meio de tipos simples,
que vivem entre a fatalidade e o jeitinho, a desgraça e a resignação.
Versos como "nóis arranja outro
lugar" e "Deus dá o frio conforme o
cobertor", de "Saudosa Maloca",
fazem eco ao viúvo conformado de
"Iracema": "O chofer não teve culpa, Iracema, você atravessou contramão; paciência, nega".
Quase sempre, porém, a tragédia
de Adoniran vem temperada pelo
humor, isso quando a canção já
não é, ela própria, um pastelão. Ele
é "o tragicômico" por definição.
O riso em Adoniran integra essa
vocação da sua música para o consolo e a aceitação da dor, conforme
a lógica de que nada tem remédio e,
no entanto, tudo está remediado.
Mesmo os erros ostensivos de português ("táubua", "adifício arto",
""frechada") não são apenas um recurso para trazer à tona a voz dos de
baixo. São também tropeços clownescos: denúncia e piada, graça e
desgraça por um gênio da MPB.
Texto Anterior: Editoriais: Haddad e o Enem
Próximo Texto: Brasília - Eliane Cantanhêde: Fichas limpas, fichas sujas Índice
|