São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Você se sente vivendo num Estado policial?

NÃO

Da banalização à busca por saídas

RENATO JANINE RIBEIRO

JÁ VIVI num Estado policial, a ditadura militar, que durou dos meus 14 aos 35 anos. Palavras como essas não podem ser banalizadas. Lembro que, em 1976, recém-retornado da França, onde fora estudar (sem ser exilado, só bolsista), recém-contratado professor da USP, me deparava toda semana com barreiras policiais na ponte da Cidade Universitária.
Em algum momento de 1978, elas acabaram. Mas demorei para perceber que não havia mais essas blitze, que sempre estavam atrás dos supostos subversivos. E me perguntei por que não tinha notado o fim delas.
A resposta que me ocorreu foi muito simples: é tão contra a nossa natureza, é tão fora de propósito viver sob a tutela de um Estado policial, que é mais fácil notar quando ele surge do que quando desaparece. A não ser, claro, que caia com estrondo, como o muro de Berlim. Mas a lenta, gradual e quase interminável redução do caráter policial de nossa ditadura passava até despercebida.
Alguém pode comparar aquele tempo ao atual? Sim, há hoje recursos de controle que na época nem se imaginavam. Desenvolveram-se mecanismos de escuta que permitem captar conversas de quase todas as pessoas. O simples uso do cartão de crédito ou do celular permite retraçar os trajetos pela cidade, pelo país, pelo mundo. Mas, tudo isso somado, não é a mesma coisa que viver no confronto direto com o policial que pode prender você a qualquer momento, sem lhe dar razões ou satisfações.
Penso na frase do então vice-presidente Pedro Aleixo, o único no governo a votar contra o ato institucional nº 5. Na reunião do ministério de 13/ 12/ 68, um ministro lhe perguntou, agastado com a posição liberal do vice-presidente: "O senhor não confia no presidente da República para lhe confiar os poderes do ato?" E o vice, com uma coragem que menos de um ano depois lhe custou o cargo, que devia ter assumido, de presidente da República, respondeu: "No presidente eu confio, mas não confio no guarda da esquina". Um Estado policial é aquele em que qualquer guarda da esquina tem plenos poderes.
Nos primeiros anos após o fim da ditadura, continuou a opressão violenta, sobretudo em regiões como o sul do Pará, palco de massacres de sem-terra. Mas a situação atual não é mais comparável com aquela. Dois governos sucessivos, dirigidos por perseguidos da ditadura, colocaram os direitos humanos na ordem do dia. Temos, com todos os defeitos de nossa políc
ia e de nossa Justiça, maior respeito pelo cidadão. Não vivemos num Estado policial.

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Mas estamos, sim, num mundo de controles multiplicados, como os que mencionei acima e outros piores. A revista "Rolling Stone Brasil" de julho mostra como a China implantou um sistema de milhões de câmeras de vigilância, com reconhecimento facial -usando tecnologia norte-americana, da mesma firma que monitora a entrada dos estrangeiros nos Estados Unidos. A distância entre os olhos é uma das características humanas que não pode ser disfarçada nem alterada, de modo que não há como escapar a esse novo "Big Brother". O que nos protege, então, não digo do Estado policial, mas do mundo policial? Antes das torres gêmeas, era o fato de que se coletava tanta informação que processá-la se tornava muito difícil. Hoje, porém, entre 10 milhões de rostos, localiza-se o meu (o seu, o de qualquer um) numa fração de segundo. Há tecnologias para captar as impressões vocais, obtidas por gravações a distância. Perto disso, nossos grampos policiais são fichinha. E não são apenas os governos, os Estados, que policiam. Qualquer particular pode espionar. Embora alguns digam que "só o criminoso deve ter medo do controle, o cidadão honesto, não", quem nos garante que o controlador não é, justamente, o criminoso? Temos saída? Precisamos inventá-las. As câmeras e a internet aumentam o controle, mas também ampliam a liberdade. Depende do uso que fizermos. A tecnologia não é, em si mesma, veículo de liberdade ou de opressão. Afinal, quando o primeiro-ministro Aznar tentou vencer as eleições na base da mentira, em poucas horas os espanhóis reverteram a situação com torpedos nos celulares. Nunca tivemos uma ágora, uma praça pública, tão ampla como a internet. Vamos usá-la para defender a liberdade e a democracia.

RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor titular de ética e filosofia política da USP. É autor, entre outros livros, de "Ética na Política".

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