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TENDÊNCIAS/DEBATES
Você se sente vivendo num Estado policial?
NÃO
Da banalização à busca por saídas
RENATO JANINE RIBEIRO
JÁ VIVI num Estado policial, a ditadura militar, que durou dos meus
14 aos 35 anos. Palavras como essas não podem ser banalizadas. Lembro que, em 1976, recém-retornado
da França, onde fora estudar (sem ser
exilado, só bolsista), recém-contratado professor da USP, me deparava toda semana com barreiras policiais na
ponte da Cidade Universitária.
Em algum momento de 1978, elas
acabaram. Mas demorei para perceber que não havia mais essas blitze,
que sempre estavam atrás dos supostos subversivos. E me perguntei por
que não tinha notado o fim delas.
A resposta que me ocorreu foi muito simples: é tão contra a nossa natureza, é tão fora de propósito viver sob
a tutela de um Estado policial, que é
mais fácil notar quando ele surge do
que quando desaparece. A não ser,
claro, que caia com estrondo, como o
muro de Berlim. Mas a lenta, gradual
e quase interminável redução do caráter policial de nossa ditadura passava até despercebida.
Alguém pode comparar aquele
tempo ao atual? Sim, há hoje recursos
de controle que na época nem se imaginavam. Desenvolveram-se mecanismos de escuta que permitem captar conversas de quase todas as pessoas. O simples uso do cartão de crédito ou do celular permite retraçar os
trajetos pela cidade, pelo país, pelo
mundo. Mas, tudo isso somado, não é
a mesma coisa que viver no confronto
direto com o policial que pode prender você a qualquer momento, sem
lhe dar razões ou satisfações.
Penso na frase do então vice-presidente Pedro Aleixo, o único no governo a votar contra o ato institucional
nº 5. Na reunião do ministério de 13/
12/ 68, um ministro lhe perguntou,
agastado com a posição liberal do vice-presidente: "O senhor não confia
no presidente da República para lhe
confiar os poderes do ato?" E o vice,
com uma coragem que menos de um
ano depois lhe custou o cargo, que devia ter assumido, de presidente da República, respondeu: "No presidente
eu confio, mas não confio no guarda
da esquina". Um Estado policial é
aquele em que qualquer guarda da esquina tem plenos poderes.
Nos primeiros anos após o fim da
ditadura, continuou a opressão violenta, sobretudo em regiões como o
sul do Pará, palco de massacres de
sem-terra. Mas a situação atual não é
mais comparável com aquela. Dois
governos sucessivos, dirigidos por
perseguidos da ditadura, colocaram
os direitos humanos na ordem do dia.
Temos, com todos os defeitos de nossa políc
ia e de nossa Justiça, maior
respeito pelo cidadão. Não vivemos
num Estado policial.
***
Mas estamos, sim, num mundo de
controles multiplicados, como os que
mencionei acima e outros piores.
A revista "Rolling Stone Brasil" de
julho mostra como a China implantou um sistema de milhões de câmeras de vigilância, com reconhecimento facial -usando tecnologia norte-americana, da mesma firma que monitora a entrada dos estrangeiros nos
Estados Unidos. A distância entre os
olhos é uma das características humanas que não pode ser disfarçada
nem alterada, de modo que não há como escapar a esse novo "Big Brother".
O que nos protege, então, não digo
do Estado policial, mas do mundo policial? Antes das torres gêmeas, era o
fato de que se coletava tanta informação que processá-la se tornava muito
difícil. Hoje, porém, entre 10 milhões
de rostos, localiza-se o meu (o seu, o
de qualquer um) numa fração de segundo. Há tecnologias para captar as
impressões vocais, obtidas por gravações a distância. Perto disso, nossos
grampos policiais são fichinha.
E não são apenas os governos, os
Estados, que policiam. Qualquer particular pode espionar. Embora alguns
digam que "só o criminoso deve ter
medo do controle, o cidadão honesto,
não", quem nos garante que o controlador não é, justamente, o criminoso?
Temos saída? Precisamos inventá-las. As câmeras e a internet aumentam o controle, mas também ampliam a liberdade. Depende do uso
que fizermos. A tecnologia não é, em
si mesma, veículo de liberdade ou de
opressão. Afinal, quando o primeiro-ministro Aznar tentou vencer as eleições na base da mentira, em poucas
horas os espanhóis reverteram a situação com torpedos nos celulares.
Nunca tivemos uma ágora, uma
praça pública, tão ampla como a internet. Vamos usá-la para defender a
liberdade e a democracia.
RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor titular de ética e filosofia política da USP. É autor, entre outros livros,
de "Ética na Política".
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