São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

Folclore ecológico

A "consciência ecológica" generalizou-se no Brasil a partir do fim dos anos 60. Por insistência do Banco Mundial, todos os grandes projetos nacionais deveriam passar por um escrutínio cuidadoso sobre os seus efeitos de longo prazo na conservação dos recursos naturais. Antes disso existiam apenas alguns estranhos indivíduos que, com ares proféticos, antecipavam que o uso abusivo de tais recursos poderia produzir problemas catastróficos no futuro. O primeiro grande empreendimento nacional no qual a questão ecológica emergiu com "força de veto" foi Carajás. Com as exigências do Banco Mundial e a necessidade de um financiamento múltiplo (Banco Mundial, União Européia e Japão), o "roadshow" do projeto enfatizava para platéias já mais sensíveis ao problema do que a nossa a rigorosa combinação da eficiência econômica com a preservação do ambiente. Mostrava-se que o projeto seria rentável a despeito dos custos conservacionistas. Hoje, vinte e tantos anos depois, não creio que nenhum dos financiadores possa dizer que as exigências ecológicas não tenham sido atendidas de forma satisfatória.
De todos os animais que a evolução produziu ao longo da escala que nos separa da origem da vida, nenhum tem como o homem "sapiens" engenho e capacidade destrutiva: basta lembrar as inúmeras civilizações que, ao consumirem seu ambiente, consumiram-se a si mesmas. Todos os outros animais que convivem e tiram proveito oportunístico da natureza estabelecem com ela relações funcionais repetitivas e duradouras, do tipo predador e presa. Estas tomam a forma cíclica e, no limite, o abuso do predador leva à extinção das duas espécies, deixando intacto o ambiente. O mais freqüente é um equilíbrio cíclico instável entre predador e presa.
Hoje todos reconhecemos a importância do respeito à natureza e a necessidade de conservação do ambiente para o desenvolvimento sustentado de que é beneficiário o próprio homem. Essa posição envolveu um ato de suprema humildade: de "senhor" da natureza, ele teve de passar a ver a si mesmo como parte dela. Permanentemente, tenta ajustá-la às suas necessidades, mas tem de aceitar que os recursos naturais são finitos. Qualquer utilização impensada representará maior escassez futura, aumentando a entropia do sistema ecológico.
Tão insensata quanto o desconhecimento desses fatos é a negação ao homem de "ajustar" a natureza às suas necessidades, preservando tanto quanto é possível a "ordem do sistema ecológico". Essa parece ser a postura dos "verdes radicais", vítimas, como todos os radicais, dos mitos "das florestas".
O Brasil está numa situação delicada. O conhecimento científico disputa palmo a palmo a primazia com o folclore. Assistimos espantados ao atraso de "outorga" de irrigação de hortifrutigranjeiros. Esse setor, cuja industrialização é imperiosa, produziu neste ano dois choques de oferta inflacionários. Assistimos horrorizados à volta da "teoria criacionista" no ensino secundário. Assistimos desanimados à resistência à "lei da gravidade" que é o uso de sementes geneticamente modificadas. Nada disso "protege" a natureza. Na melhor das hipóteses, nos empobrece material e espiritualmente...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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