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CARLOS HEITOR CONY
Lição de vida
RIO DE JANEIRO - O avião era grande, desses que têm esquinas, escadas
internas e segundos andares. Tive dificuldade de localizar o assento, no
cartão de embarque o seis parecia
um oito, ou vice-versa. A comissária
de bordo veio me ajudar, indicou-me
a poltrona, sorriu e, antes que eu
agradecesse, ela disse: "Obrigada".
Fiz a cara de sempre, a de quem nada entende de nada. E, que me lembrasse, nada fizera para que merecesse o agradecimento de quem quer
que fosse.
Ela compreendeu e acrescentou: "Li
uma historinha sua no livro de minha filha e aprendi uma grande lição
de vida". Outros passageiros engarrafaram o corredor e a conversa parou ali mesmo, ela foi fazer a sua parte e eu fiz a minha, amarrando-me
no assento e invocando meus santos
preferidos para que me protegessem.
Só depois fiquei pensando: que historinha teria sido essa, com uma lição de vida -eu, que nada aprendi
da vida, que tanto quebro a cara a
cada dia e que sempre que posso, e
mesmo quando não posso nem devo,
procuro justamente nada ensinar do
nada que não me canso de aprender?
Bem, o avião decolou, a viagem demoraria mais de 11 horas, se houvesse
oportunidade, eu tomaria satisfações
com a moça. Mas não foi preciso. Servido o jantar, naquele hora em que
todos procuram dormir no avacalhado território que costuma ser vendido
como "o mais espaçoso e confortável", a comissária veio com um caderninho que me parecia de endereços. Ela mesma acendeu a luz individual que me iluminaria e mostrou
uma anotação feita com tinta vermelha: "A melhor forma de se encontrar
é quando tudo está perdido".
Não me lembro de ter escrito essa
frase, que tem um leve bafio acaciano. Mas estava cansado e com sono.
Fiz um gesto vago, como se desdenhasse o que havia escrito. E, como
eu parecia sentir frio, ela abriu a coberta azul e me agasalhou, como se
agasalha um menino.
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