São Paulo, sexta-feira, 06 de novembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O doping e a hora da reversão

SABINO VIEIRA LOGUERCIO


O atual sistema punitivo de controle do doping entra facilmente na definição de delinquência burocrática institucional

O ATUAL sistema punitivo de controle do doping entra facilmente na definição de delinquência burocrática institucional. As entidades esportivas, que têm a obrigação tácita de prover o comportamento civilizado entre os atletas e organizar o universo de influências que gravita em torno deles, introduziram a insensatez e a discricionariedade de expor à execração pública aqueles que deveriam receber as culminâncias do carinho e do respeito e que, catastroficamente, se veem transformados em quase criminosos.
E ainda são obrigados a suportar o olhar implacável de quem desconhece o fenômeno da biotransformação das drogas e dos roteiros metabólicos privativos de cada um de nós.
Pouco há que se possa questionar sobre os benefícios formais de uma política antidoping. Todas as pessoas, ligadas ou não ao esporte, firmaram a convicção de que as disputas esportivas presumem a lealdade entre os competidores.
O doping, perfeitamente configurado como artifício para melhorar o rendimento pessoal -ou o rendimento de um grupo- em detrimento do desempenho dos concorrentes, não pode receber aprovação de nenhum segmento organizado de gente intelectualmente sã.
Mas, quando a marcha do saber é interrompida por leis arbitrárias, todos nós desembarcamos no obscurantismo, que fecha os caminhos do raciocínio e obstrui o fluxo das informações com que nos brinda a ciência. Desfaz-se, então, o vínculo entre a ética médica, o conhecimento científico e os princípios jurídicos.
O primado dos preceitos perenes do exercício da medicina e das ciências biológicas não pode deixar de constituir uma barreira compacta contra o pragmatismo de condutas perversas e desumanas.
Um conjunto de ações pode assegurar a prevenção do uso de substâncias nocivas à saúde individual ou atentatórias contra o "fair play" esportivo. Mas essas medidas preventivas precisam ser, necessariamente, regidas pelos pressupostos éticos, que obrigam ao sigilo e à discrição.
Tais providências destinam-se a limpar as disputas esportivas e, principalmente, preservar a intimidade das pessoas, como um dever sagrado e irrecorrível, previsto em vários artigos do Código de Ética Médica.
Mesmo que se admita a necessidade de leis próprias para o esporte, o indispensável limite de sua abrangência será determinado pela hierarquia jurídica. As regras que afrontam, agridem e apagam as cláusulas pétreas constitucionais, de que se orgulham as nações modernas, não podem ser impostas de forma tão acintosa.
Os casos recentes das atletas Mariana Ohata e Daiane dos Santos, ao lado de outras centenas, exigem providências imediatas das autoridades que assumiram o compromisso de abrigar, dentro de poucos anos, os dois mais importantes eventos do calendário esportivo mundial.
Pensar que tais atletas, sabidamente bem formadas, poderiam arriscar-se ao vexame de urinar na pista, ao ingerir conscientemente a furosemida, um diurético de alça, de ação fulminante, que poderia levá-las à desidratação e à perda de consciência, é brincar demais com nosso discernimento. No caso de Daiane, a violência contra sua reputação alcança um tom ridículo e absurdo, porquanto a atleta, além de estar alijada do menor vislumbre de disputa atlética, convalescia de uma intervenção cirúrgica.
Por evidente imposição profissional, seus médicos assistentes estavam liberados para prescrever qualquer droga que visasse a recompor o estado de higidez da nossa laureada menina.
Soou a hora de se levantarem os cidadãos sensatos. Não é mais possível que as entidades responsáveis pela preservação dos direitos humanos permaneçam caladas diante de uma monstruosidade desse porte.
E os cidadãos do mundo inteiro poderão aferir o destemor e a sensibilidade que esperamos dos mandatários brasileiros, no sentido de comandar a reviravolta que se impõe, para restabelecer, assim, a dignidade dos indivíduos como valor social máximo, minuciosamente talhado, discutido e sabiamente composto pela humanidade através dos séculos.


SABINO VIEIRA LOGUERCIO , médico gastrenterologista e endoscopista do sistema digestivo, é autor do livro "Doping e as Muitas Faces da Injustiça".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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