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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Mistificação econômica
Reina entre os defensores da falsa
ortodoxia econômica a que se entregaram os governos do PT e do
PSDB a mais completa confusão conceitual. Tornado patente o malogro da
cartilha que abraçaram, os falsos ortodoxos não conseguem mais recorrer à
fórmula consagrada: alegar que o remédio não funcionou porque a dose
não foi suficiente. A dose foi cavalar.
Por que, então, deu errado, não só
no Brasil mas onde quer que se haja
aplicado, o chamado "Consenso de
Washington"? Não se entendem. Cada um conta história diferente e todos
juntos revelam a falência intelectual
em que caíram. Só num ponto concordam: é preciso diminuir a parte da
despesa pública que é gasto corrente e
aumentar a parte que é investimento.
O leitor desavisado talvez suponha
que essa distinção entre investimento
e custeio conte com base sólida na teoria das finanças públicas e nos fatos
econômicos. Na verdade, é fraude a
serviço de injustiça e de insensatez.
O conceito corriqueiro de investimento público associa, ilegitimamente, duas idéias distintas: a de despesa,
não recorrente, por um ativo duradouro, sobretudo um ativo físico
-uma coisa-, e a de despesa para
obter fonte de benefícios ou de renda
futuros. Um instante de reflexão basta
para mostrar que a relação entre essas
idéias é apenas acidental. O ativo duradouro pode não produzir benefícios
futuros: por exemplo, pirâmide construída para enaltecer o governante. E o
benefício futuro pode resultar de despesa corrente: por exemplo, em salários de agentes de saúde pública. A associação forçada das duas idéias fundamenta a preferência por gasto em
coisas sobre gasto em gente.
Exemplos esclarecem. Construção
de escola seria investimento. Pagamento de professor seria custeio. Uma
das maiores deformações do gasto em
educação no Brasil tem sido preocupar-se mais com construção de escola
do que com pagamento e formação de
professor. Cingapura, admirada pelos
falsos ortodoxos, sempre insistiu em
pagar regiamente os funcionários públicos, mesmo quando era muito mais
pobre do que é hoje, porque compreendeu que sem corpo funcional de
alta qualidade não há como executar
bem qualquer política pública. A distinção entre investimento público e
despesa corrente não faz sentido. O
que faz sentido é discutir e cobrar a
eficiência do gasto público, seja ele
classificado, na terminologia contábil,
como custeio ou investimento.
A distinção entre investimento e
custeio nunca fez parte da teoria das
finanças públicas, até que difundida, a
partir das universidades americanas,
em décadas recentes. Na época de
Wicksell, de Keynes e de Schumpeter,
houve esforço para livrar a análise
econômica de fetiches jurídicos e contábeis como esse. No ambiente despolitizado de final do século 20, tudo regrediu. Na Europa, social-democratas
conservadores passaram a usar a distinção entre investimento público e
gasto corrente para reconciliar o ativismo dos governos com a prudência
fiscal: o governo poderia tomar emprestado -mas só para investir. Mistificação medrosa.
No Brasil, é mais grave. País radicalmente desigual como o nosso, precisa
gastar em gente mais do que em estradas e usinas. Entre nós, a distinção entre investimento e custeio serve para
atacar o gasto na educação e na saúde
dos brasileiros bem como nos salários
e nas pensões dos funcionários do Estado. É como aquela bomba que mata
as pessoas e deixa as coisas incólumes.
Mistificação marota.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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