São Paulo, terça-feira, 06 de dezembro de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Mistificação econômica

Reina entre os defensores da falsa ortodoxia econômica a que se entregaram os governos do PT e do PSDB a mais completa confusão conceitual. Tornado patente o malogro da cartilha que abraçaram, os falsos ortodoxos não conseguem mais recorrer à fórmula consagrada: alegar que o remédio não funcionou porque a dose não foi suficiente. A dose foi cavalar.
Por que, então, deu errado, não só no Brasil mas onde quer que se haja aplicado, o chamado "Consenso de Washington"? Não se entendem. Cada um conta história diferente e todos juntos revelam a falência intelectual em que caíram. Só num ponto concordam: é preciso diminuir a parte da despesa pública que é gasto corrente e aumentar a parte que é investimento. O leitor desavisado talvez suponha que essa distinção entre investimento e custeio conte com base sólida na teoria das finanças públicas e nos fatos econômicos. Na verdade, é fraude a serviço de injustiça e de insensatez.
O conceito corriqueiro de investimento público associa, ilegitimamente, duas idéias distintas: a de despesa, não recorrente, por um ativo duradouro, sobretudo um ativo físico -uma coisa-, e a de despesa para obter fonte de benefícios ou de renda futuros. Um instante de reflexão basta para mostrar que a relação entre essas idéias é apenas acidental. O ativo duradouro pode não produzir benefícios futuros: por exemplo, pirâmide construída para enaltecer o governante. E o benefício futuro pode resultar de despesa corrente: por exemplo, em salários de agentes de saúde pública. A associação forçada das duas idéias fundamenta a preferência por gasto em coisas sobre gasto em gente.
Exemplos esclarecem. Construção de escola seria investimento. Pagamento de professor seria custeio. Uma das maiores deformações do gasto em educação no Brasil tem sido preocupar-se mais com construção de escola do que com pagamento e formação de professor. Cingapura, admirada pelos falsos ortodoxos, sempre insistiu em pagar regiamente os funcionários públicos, mesmo quando era muito mais pobre do que é hoje, porque compreendeu que sem corpo funcional de alta qualidade não há como executar bem qualquer política pública. A distinção entre investimento público e despesa corrente não faz sentido. O que faz sentido é discutir e cobrar a eficiência do gasto público, seja ele classificado, na terminologia contábil, como custeio ou investimento.
A distinção entre investimento e custeio nunca fez parte da teoria das finanças públicas, até que difundida, a partir das universidades americanas, em décadas recentes. Na época de Wicksell, de Keynes e de Schumpeter, houve esforço para livrar a análise econômica de fetiches jurídicos e contábeis como esse. No ambiente despolitizado de final do século 20, tudo regrediu. Na Europa, social-democratas conservadores passaram a usar a distinção entre investimento público e gasto corrente para reconciliar o ativismo dos governos com a prudência fiscal: o governo poderia tomar emprestado -mas só para investir. Mistificação medrosa.
No Brasil, é mais grave. País radicalmente desigual como o nosso, precisa gastar em gente mais do que em estradas e usinas. Entre nós, a distinção entre investimento e custeio serve para atacar o gasto na educação e na saúde dos brasileiros bem como nos salários e nas pensões dos funcionários do Estado. É como aquela bomba que mata as pessoas e deixa as coisas incólumes. Mistificação marota.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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