São Paulo, terça-feira, 06 de dezembro de 2005

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TEDÊNCIAS/DEBATES

O futebol e a política

BORIS FAUSTO

Há mais pontos de contato, seja pelas semelhanças, seja até pelas diferenças, entre o mundo do futebol e o da política do que pareceria à primeira vista. Uma óbvia semelhança se localiza na praga da corrupção, que envenena a vida política e, no caso do futebol, tende a transformar em descrença os sonhos da grande massa. Nas duas situações, em graus variáveis, corremos o risco de chegar a uma conclusão popular nada alentadora: "Tudo é roubalheira".


A praga da corrupção envenena a política e, no caso do futebol, tende a transformar os sonhos da massa em descrença


Tanto numa esfera como na outra, ninguém ignora que episódios de corrupção vêm de longe. Mas, nos dias atuais, houve uma mutação, embora mais ampla e mais tentacular no terreno da política do que no do futebol. A primeira passou de eventual a sistêmica, com lances que aqui me dispenso de enumerar. No futebol, nunca assistimos à ligação íntima entre apostadores e juízes corruptos, tudo indicando uma ampliação de práticas corruptoras a diferentes aspectos da vida social.
Indo adiante, com um exemplo concreto, valeu a pena assistir ao jogo Naútico e Grêmio, da Série B do Campeonato Brasileiro, decidindo uma vaga para o acesso à Série A. Tendo em conta que muita gente não viu o jogo, narro algumas de suas peripécias e minhas reações pessoais, com licença dos eventuais leitores que não se interessam por futebol.
De saída, comecei torcendo pelo Grêmio, seja porque quase certamente já teríamos um representante pernambucano na Série A -o Santa Cruz-, seja pela simpatia que, por muitas razões, entre elas históricas, me desperta o Rio Grande do Sul, à margem da intransponível rivalidade entre colorados e gremistas. Mas mudei de lado -isso é possível quando se está torcendo para um time que não é o da sua absoluta preferência- ao ver vários jogadores do Grêmio tentarem agredir o árbitro da partida quando "sua senhoria", como se dizia no passado, marcou um pênalti para o Santa Cruz.
Com a marcação do pênalti e a expulsão de jogadores do Grêmio, que passaram a ser sete diante dos 11 do Náutico, a vitória pernambucana se desenhava como certa. Mas não foi assim. O Náutico perdeu a penalidade e o Grêmio chegou ao gol de Anderson, que, com o perdão da heresia, lembrou as façanhas de Ronaldinho. A essa altura, encantado com a garra dos "sete guerreiros", eu já voltara a torcer para o Grêmio.
O que isso tem a ver com a nossa cultura e a nossa política? Muita coisa. Em primeiro lugar, e esse não foi um caso isolado, pois se reitera a cada jogo e está presente em muitas atitudes na esfera pública e privada, revelou-se mais uma vez a nossa dificuldade de aceitar preceitos legais, sejam eles mandamentos constitucionais, regras de trânsito ou decisões de um árbitro de futebol. A tendência dominante é recusá-los ou contorná-los quando não convém ao interesse de alguém (governos, empresas, pessoas individuais). Esse é um traço generalizado da nossa cultura, abrangendo diferentes camadas sociais. Mas é preciso lembrar que as mais privilegiadas estão em muito melhores condições para se impor, seja pelo peso das relações pessoais, seja pelo peso do dinheiro, ou ainda por ambas as coisas.
Repensando meu comportamento no correr do jogo, verifico que a indignação pela atitude dos jogadores do Grêmio não fazia lá muito sentido. Ela pressupunha um sentido de racionalidade e de justiça incomum no futebol. Ao abandonar esses princípios, mudando de lado ao longo da partida, é que estive mais sintonizado com as características do jogo decisivo: irracionalidade, imprevisibilidade, paixão, coragem, desespero. Quando se deixa esses sentimentos aflorarem, a indignação dá lugar ao deleite. Mesmo assim, o desejo de racionalidade e de justiça não desaparece. Execrável, por exemplo, é aquela frase atribuída ao torcedor fanático: "Quero que meu time ganhe de meio a zero, de preferência com um gol de mão".
A prioridade da paixão muda de ordem de importância quando cogitamos o mundo político. Claro, bem poderíamos aí renunciar à racionalidade e não levar a sério o troca-troca partidário, a resistência de muitos homens públicos a obedecer regras, acompanhando, assim, com ironia, as peripécias surpreendentes, os lances melodramáticos e a irracionalidade que vem caracterizando a vida política.
Mas essa é uma atitude muito comum na mídia estrangeira, nada preocupada com nossos destinos, pronta a adotar estereótipos banais a respeito do Brasil. Nós, pelo contrário, temos de nos preocupar seriamente com o país e manter a esperança de que seja possível alcançar menor grau de corrupção, maior estabilidade das instituições, aí incluindo os partidos políticos, maior respeito às leis e ao equilíbrio dos Poderes.
Mas, em doses controladas, um pouco de paixão não faz mal ao mundo da política. Há quem diga que a apatia que, com freqüência, vem cercando as disputas eleitorais em países do Primeiro Mundo é sinal de estabilidade e de consenso básico. Não penso assim. Acredito que o entusiasmo que caracteriza ao menos nossas eleições presidenciais, apesar das decepções posteriores, é um bem valioso a ser preservado.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).


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