São Paulo, terça-feira, 06 de dezembro de 2005

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TEDÊNCIAS/DEBATES

Pelo direito à opção

JANDIRA FEGHALI

As nossas condutas são dirigidas por muitos mandamentos. Há valores morais, éticos e ideológicos e dispositivos legais regulando nosso dia-a-dia. Estamos num Estado democrático de Direito. A liberdade de culto religioso é parte constitutiva deste Estado e está garantido na Constituição desde 1946, por iniciativa da bancada comunista, da qual o saudoso escritor Jorge Amado era membro. O exercício individual da religiosidade é uma característica da democracia. Mas também é uma grande conquista democrática a separação entre Estado e igreja, o Estado laico.


O principal inimigo da descriminalização do aborto é o preconceito religioso e a negação hipócrita da realidade


As leis precisam ser universais, ultrapassar os limites das opções individuais, das religiões. Exceto em legislações que buscam atender a segmentos sociais discriminados ou de maior vulnerabilidade, o arcabouço legal deve atender a todos, garantindo direitos, principalmente quando tratamos de direitos humanos e de saúde.
Em aspectos religiosos, por exemplo, as crenças e as convicções preponderam sobre as razões. E, assim, normas de conduta dessa natureza não podem ser impostas universalmente. É esse o caminho que escolho para tratar da questão da interrupção da gravidez, ou do aborto. É preciso discutir o aspecto da saúde, já que o aborto é responsável por um grande número de internações hospitalares e de mortes de mulheres. Longe de ser um debate sobre uma matéria penal, merece destaque a sua referência nas políticas públicas de saúde.
Em 1940, o Código Penal já avançava na laicidade da lei. Em seu artigo 128, estabeleceu que o aborto não é considerado crime em duas hipóteses: se a gravidez colocar em risco a vida da mãe ou se for resultado de estupro.
Na Câmara dos Deputados, desde 1991, tramita o projeto de lei nº 1.135, que descriminaliza a prática do aborto. A ele foram apensados outros 14 e o resultado da comissão tripartite que foi coordenada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Como médica e relatora da matéria, procurei me ater aos dados da realidade brasileira, às experiências internacionais, aos acordos assinados pelo Brasil e já ratificados no Congresso Nacional, às deliberações da Conferência Nacional de Mulheres, aos aspectos constitucionais e técnicos.
O art. 5º da Constituição defende a inviolabilidade do direito à vida. Os parlamentares que são contra o aborto afirmam que a inviolabilidade deve ser considerada desde a concepção. Durante a Assembléia Constituinte, essa tese não prosperou, sendo derrotada por ampla maioria. A opção pela manutenção ou não da gravidez deve ser garantida às mulheres brasileiras.
O Estado deve garantir o planejamento familiar, assegurando meios e informações, e, às mulheres que optarem pela maternidade, o Estado deve assegurar acesso a serviços que permitam uma gravidez saudável e condições para criar os filhos com dignidade. Mas é também um dever do Estado fornecer as condições necessárias para que os serviços de saúde possam prestar atendimento às mulheres que necessitem ou optem por interromper uma gravidez.
No Brasil, o principal inimigo da descriminalização do aborto é o preconceito religioso e a negação hipócrita da realidade. Numa manobra protelatória, pretende-se levar o tema a plebiscito, invertendo totalmente a natureza da consulta popular. Esta não deve ser utilizada para impor preceitos morais ou religiosos nem para impor questões de foro íntimo. Sabem que o plebiscito, constitucionalmente, não pode ser aplicado sobre temas que versam sobre direitos humanos ou decisões que envolvam convicções filosóficas ou de foro íntimo.
Qual o direito que temos de decidir em plebiscito se uma grávida de um feto sem cérebro, sem possibilidades de sobrevida, deve manter a gestação até o final? Como também não poderíamos em plebiscito decidir se os padres devem ou não aceitar o celibato.
Mesmo na ilegalidade, o procedimento é realizado por milhares de mulheres. Essa clandestinidade assegura tão somente a existência de clínicas particulares, cujos serviços não são fiscalizados, o que gera a impossibilidade de controle por parte das autoridades competentes.
A clandestinidade é responsável por mortes aos milhares de mulheres e, pelos altos gastos, por parte dos serviços de saúde pública no atendimento às mulheres com doenças e seqüelas provenientes de aborto mal feito. Encontramos sempre, nesses casos, mulheres de baixo poder aquisitivo. Portanto, a ilegalidade tem ótica de classe.
Independente de credos e filiação partidária, a sociedade não deve se omitir diante da importância do assunto. Como médica e mãe, também sou defensora incondicional da vida, e, por isso mesmo, defendo também a vida das mulheres e seu direito à opção.
Não nos enganemos. O embate não é só em função do direito ou não ao aborto, mas a todo assunto que perpasse os direitos reprodutivos, como uso de preservativo, contracepção de emergência ou pílula do dia seguinte, mesmo para evitar a gravidez em casos de violência sexual, ou até mesmo nos casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida.
Devemos lutar, todos e todas, acima dos partidos e religiões, pela redução da mortalidade materna e pelo avanço das leis que consolidem a democracia. Deixemos o exercício da religiosidade para a individualidade de cada um. Pois a lei apenas amplia direitos para que cada um a utilize, ou não, de acordo com suas próprias convicções.

Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PC do B-RJ e vice-presidente da Frente Parlamentar da Saúde.


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