São Paulo, quarta-feira, 07 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O PT que ri por último

CANDIDO MENDES

Como vamos, em tempos de balanços obrigatórios, responder ao "a que veio Lula", seus resultados, seus impasses, no primeiro aniversário do governo diferente e do compromisso da transformação social, cobrado pela votação monstro?
Há que ficar na luz amarela, que, prudentemente, avança nos arraiais petistas, a Fundação Perseu Abramo? Que impacto tem a primeira voz organizada da oposição, na crítica de Serra, enquanto novo presidente do PSDB? Lula não se engana sobre o portento à frente e a estratégia para vencer, de fato, a inércia do que está aí. Quer o julgamento final tudo ou nada ao fim do quadriênio. Recusa a vantagem temporária dos pontos ganhos já no Fome Zero, ou no enfrentamento da Alca, em nova liderança internacional, ou no desbloqueio das reformas consideradas impossíveis, e duas, de vez, em pouco mais de semestre efetivo de ação parlamentar.
Lula sabe que a diferença começa pela semelhança com o regime anterior para sair da camisa-de-força do sistema, vencendo a globalização neoliberal, que o empareda. Dirigiu-se ao eleitorado mais perto e, por isso mesmo, mais exigente, o dos sem-terra, para pedir que suspendam o veredicto final até que dê conta do recado. O arranco demora, como pode ganhar a mola de saltos bruscos e cumulados, daqui a pouco, no vencer a decepção e o anticlímax. O PT tem a originalidade do debate exaustivo de sua performance, seus erros. A impaciência de resultados é retórica privativa das elites de poder.


A nova prática está em que se desempatou o jogo do status quo. O regime já sabe por onde não ir


O fato novo é o desse inconsciente coletivo que veio à tona porque acredita num outro desfecho, e são os excluídos que abrem outros prazos de espera que os dessa oposição que finalmente diz, com Serra, ao que veio. A crítica cobra o desempenho de Lula em face de um programa, qualquer programa, mesmo contra o das matrizes veneráveis do PT. Aferra-se à discussão de contradições e condena o retrocesso geral do governo, deserto da utopia. O que está em causa num governo que quer a transformação social é uma prática-prática que não se mede por todo o voluntarismo abstrato da mudança, mas enfrenta um propósito que não passa pelo luxo do apregoar-se o que se queira, mas que caminha, assentado na resposta da estrita expectativa popular.
A consolidação hoje do Planalto passa necessariamente por Palocci e Meirelles, enfrenta orçamentos arrasados para a ação social, aceita as regras da estabilidade global para, a partir de Cancún, infletir os fatos consumados da Alca, ou assenta um definitivo viés distributivista à reforma da Previdência. Se Serra cobra de Lula a prioridade de um projeto sobre o exercício do poder nu, o faz por um a priori invencível, no quadro da mordida brutal que a realidade impõe a toda volúpia programática.
Se o regime atravessa a aparência do tudo igual, é por entender sua enorme precariedade num mercado internacional em que o risco-Brasil obedece à balança farmacêutica, na qual os erros se pagam com retrocessos gigantescos da contenção inflacionária à garantia do "surplus" primário e às vantagens mínimas, à primeira vista, que marcam a penosíssima dobra da mudança. E o essencial é responder à expectativa popular bruta, daquela em que o inconsciente coletivo pode pautar a fuga ao engolimento pela inércia geral do sistema, de portas estreitíssimas de saída.
Aí está esse dado básico da paciência popular, do Fome Zero, que resistiu às desordens populistas para acumulação de seus benefícios, no exponencial para os próximos meses. Ou, lá fora, essa paciente caminhada em que nos desatamos dos fatos consumados dos mercados hegemônicos. Vamos ao ganho pelo sucesso paciente do ministro Amorim, da discussão dos contenciosos americanos, no fórum da OMC, em nossa voz mundial, ao lado dos governos de Pretória e de Nova Déli.
A melhoria social, diante dos orçamentos rígidos, não permitirá nenhuma guinada estrepitosa. Mas seus ganhos são todos das forças sociais do país, e não mais das burocracias, na responsabilização coletiva pelas prioridades, como uma exigência continuada da cidadania. A transformação, que vai bem, obrigado, logra-se por essa verdadeira contabilidade histórica, que é a do sacrifício consentido e da meta cobrável, entre possíveis objetivos conflitantes a prazo, que acordem agora no desbloqueio das reformas, como permite o voto do governo, mantida a enorme frente que elegeu Lula e assegurou o quadro da mudança, a engolir, a médio prazo, o país da inércia e do deixa-disso.
A nova prática está em que se desempatou o jogo do status quo. O regime já sabe por onde não ir. E aí está a amplíssima arena de todos os pleitos da sociedade civil, ONGs, sindicatos, marchas, todos entendendo até onde podem avançar. Lula tem na mão o controle do dissenso popular. Dessa função arbitral não se demite, já que é por ela que se garante o governo diferente, à prova dos retrocessos proclamados pelos donos do poder, a falar ainda pelos socialmente vitimados ou excluídos.
Não é sem razão que a prioridade do presidente está sempre adiante da do governo, como um todo. O seu êxito hoje não é do confronto linear das suas perdas e ganhos, mas do que a fidelidade à opção por Lula abriu, no ganho do salto implícito e nos temperos entre o avanço e a espera. E deles o povo como povo, já se disse ao fim do varguismo, sabe mais do que a elite como elite.

Candido Mendes, 75, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "Senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.


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