São Paulo, Quinta-feira, 07 de Janeiro de 1999
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Tolicionário dos anos reais

VINICIUS TORRES FREIRE

Devemos convir que toda idéia pública, toda convenção herdada, é uma tolice, pois ela convém à maioria, diz a máxima do Chamfort que serve ao dicionário de idéias feitas de GustaveFlaubert, o romancista francês, um tolicionário de clichês, na tradução do poeta Augusto de Campos.
De fato, as profundezas do espírito jamais foram tão povoadas como as do inferno, e a tolice, mais do que o bom senso e infinitamente mais do que o dinheiro, é a coisa mais bem repartida entre a humanidade. Mas alguém revoltado com a estupidez brasileira, que cresce nesses dias em que a economia definitivamente desanda, sempre terá à mão para o seu tolicionário exemplos mais ricos entre a maioria que conduz o país do que entre a choldra largada à própria sorte, a maioria sem voz de quem, desde a escravidão até a pobreza e ignorância livres, de pouco se ouvem os palpites, mesmo tolos, sendo mais obrigada a suportar a tolhice alheia, de cima.
O professor Paulo Arantes, filósofo da USP e hoje desafeto de seus ex-colegas de universidade no governo, recolheu com muita graça o primeiro tolicionário da elite dos anos tucanos no seu "Almanaque Zero à Esquerda". Arantes, talvez até com razão, acha no entanto que o país está condenado a ir à breca, e apenas espicaça a baboseira intelectual dos satisfeitos, agregados e cooptados da era do Real, sem acreditar que se possa ir muito além disso.
Mas outros tipos de cidadãos honestos e prestantes com raiva e paciência têm de acertar várias contas com a verborréia oficial que embala pacotes e embrulhinhos mais cotidianos do governo desde que o franquismo monetário em suas versões mais ou menos radicais tomou conta do país, há mais de quatro anos -e se deve acertar contas não só com ela, mas também com a tolice que se lhe opõe ditos oposicionistas ou críticos de ocasião.
Para reduzir a má vontade com o governo, pode-se começar até pelos críticos,pois não, para quem o Real é uma empulhação que produz mais miséria, uma tolice útil para quem hoje está no poder, pois diatribe sem fundamento e desmoralizável que, na verdade, se equipara à propaganda oficial, mas de sinal trocado.
A renda média no país só foi tão alta como nos anos do Real no final do milagre econômico, por volta de 1980, e na fantasia populista do Cruzado em 1986. Mas isso significa que estamos marcando passo há 20 anos. Ou pior, pois a desigualdade social piorou nesse período e foi congelada neste governo, que assim pretende mantê-la, pois sua política social, como se pode ler no discurso de posse do presidente, é manter a estabilidade e colocar o povo na escola. Isso é pouco, nada, e na verdade significa uma reedição da teoria do bolo que precisa crescer para ser dividido, contribuição do regime militar ao pensamento social.
O governo diz que todos os indicadores sociais têm melhorado. Têm, de fato, como têm melhorado quase em qualquer outro lugar do mundo com exceção de Burundi e vizinhanças; têm melhorado, como sempre melhoraram desde que se aboliu a escravidão, desde que inventaram a penicilina e a água tratada e esgotos. O fato é que, há décadas, o Brasil mal sai de onde está no ranking mundial do desenvolvimento humano, e está mal posicionado, atrás de países com ainda menos recursos. E não sai de onde está porque não se toca nessa que é a pior distribuição de renda do planeta.
Para que seja diferente é preciso que o país deixe de ser conservador de maneira tão atroz como é. Que as políticas econômicas deixem de ser uma fórmula para adaptar a economia do país aos ciclos da economia global, deixando tudo como está aqui dentro, que é o que se tem chamado de modernização conservadora. Que palavras mágicas como ajuste fiscal deixem de significar uma outra maneira de colocar ordem na casa, mantendo a mesma ordem econômica atroz de sempre.


Vinicius Torres Freire é editor de Opinião. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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