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Crise de valores
BORIS FAUSTO
No duro terreno dos fatos, os valores básicos de nosso tempo correm permanente risco. Há muitos inimigos dos valores democráticos
TORNOU-SE UM lugar-comum a
referência à crise de valores nas
sociedades ocidentais contemporâneas. Seria uma tarefa ingrata
definir o conceito de valor. Melhor será pisar em terreno mais seguro, lembrando sua multiplicidade e sua natureza histórica.
A multiplicidade aponta para o fato
de que valores específicos dizem respeito a esferas distintas da vida social:
plano da religião, da família, da vida
política. Eles podem ter conteúdo diverso, como é o caso da conhecida noção de Weber, distinguindo, no campo político, a ética da convicção e a
ética da responsabilidade. Podem
também estar inter-relacionados, como sustenta o mesmo Weber ao estabelecer relações entre a ética protestante e o espírito do capitalismo.
Na dimensão histórica, valores individuais ou coletivos permanecem,
se transfiguram ou desaparecem. Por
exemplo, nas sociedades aristocráticas, o heroísmo e a honra eram virtudes centrais e um apanágio da nobreza. No mundo burguês do passado ou
de hoje, essas virtudes não desapareceram, mas deixaram de ter a mesma
significação, passando, quase sempre,
do âmbito público para o privado.
Heroísmos guerreiros não nos impressionam, embora governos ainda
tentem fabricar heróis ou heroínas,
como foi o caso do governo Bush no
início da Guerra do Iraque.
O heroísmo de nossos dias não é um
valor coletivo, mas uma façanha excepcional que os meios de comunicação destacam: o homem que se atira
às águas de um rio-esgoto para salvar
uma criança desconhecida; a mãe
que, sem saber nadar, se lança às
águas da enchente para tentar salvar a
filha etc. Os heróis do nosso tempo,
aliás, não são os generais condecorados, mas os simples bombeiros.
A honra passou para segundo plano, a ponto de não se levar muito a sério quem insista em resguardá-la. Os
tempos são de "flexibilidade", de desrespeitar o que, no passado, se chamava de "palavra de honra". A esperteza na obtenção de vantagens passou
a ser moeda comum, sempre justificada pelo êxito.
Por outro lado, tomando a dimensão mais ampla do que consideramos
valores na sociedade atual, constatamos um paradoxo. Nunca eles tiveram um sentido tão abrangente, enquanto, ao mesmo tempo, são ignorados ou transgredidos.
Nos dias que correm, estabeleceu-se -o que é muito positivo- uma associação entre o regime político democrático e a afirmação de valores.
A democracia contém, por definição, princípios de soberania popular,
de liberdade de expressão, de rotatividade no poder, de transparência nas
decisões, de igualdade entre os cidadãos, sem distinção de raça, gênero
etc. Esses valores básicos não constituem prerrogativa de determinadas
classes ou grupos sociais, mas se convertem em direitos de todos os membros da sociedade.
A constatação não pretende ocultar, obviamente, a distância que vai
dos valores à sua prática, redundando, por várias razões, na crise da democracia. Mas tais valores são um parâmetro essencial do mundo de hoje.
Não é por acaso que, desde a liqüidação do nazifascismo e da derrubada
do império soviético, se fala da democracia como valor universal.
Essa expressão, porém, não tem estrito sentido geográfico. Os valores
democráticos estendem-se à Europa
ocidental, aos EUA, à América Latina
e a países da Ásia (como Japão e Índia) com enraizamentos mais firmes
ou mais frouxos. Por razões históricas, não alcançaram outras regiões do
mundo ou constituem aí tendências
bem minoritárias. Nessas regiões, a
tentativa de impor um regime democrático a ferro e fogo só tem resultado
em desastres, como se viu no Iraque.
No duro terreno dos fatos, os valores básicos de nosso tempo -e, aos já
enunciados, poderíamos acrescentar
outros, como a preservação da natureza- correm risco permanente, seja
por razões ideológicas, pela carência
material da população de alguns países ou pelo desejo guloso dos governantes de permanecer no poder.
Infelizmente, os inimigos dos valores democráticos são muitos, e sua retórica, muitas vezes, é eficaz.
Os inimigos não estão ausentes dos países
de regime democrático consolidado
que contam, porém, com instituições
sólidas para enfrentar os riscos. O
canto da sereia autoritária encontra
maior espaço em países marcados pela pobreza, nos quais salvadores da
pátria e seus acólitos -intelectuais,
burocratas e até profissionais liberais- tratam de reduzir os valores democráticos a uma "farsa das elites".
BORIS FAUSTO historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
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