São Paulo, sexta, 7 de março de 1997.

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De que globalização falam as mulheres?


Se os neoliberais dizem que é preciso inventar coletivamente o futuro, as mulheres buscam cumprir essa meta
MARTA SUPLICY
O empobrecimento das populações está marcado por uma característica própria: a crescente incorporação de mulheres ao segmento mais pobre da população brasileira e mundial.
As mulheres têm limitações de acesso a emprego e crédito. Aumentam os lares que dependem exclusivamente dos salários das mulheres, há alta incidência de mães adolescentes impedidas de se capacitarem como profissionais, faltam equipamentos sociais para atendimento a crianças e adolescentes.
A visão neoliberal, que está cada vez mais dominando as políticas econômicas do mundo -e do Brasil-, se fundamenta na teoria de que a competição livre e o mercado são instrumentos de auto-regulação da economia.
Auto-regulação de quem? Para quem? Como falar em competição livre e mercado como auto-reguladores, se as desigualdades de oportunidades e de condição se acentuam e se agudecem?
O que estamos vendo no governo brasileiro (com aplausos da comunidade financeira internacional) é uma tendência cada vez mais clara de retirar do Estado a responsabilidade pela garantia dos direitos fundamentais.
Dá-se cada vez mais à sociedade civil, às trabalhadoras, às mulheres, aos homens, à população urbana e rural o dever de se ``auto-regular''. Enfim, debita-se aos pobres -e às pobres- o dever de sair da pobreza e da exclusão.
Nesse marco, enquanto o número de empregos no setor formal se reduz, o setor informal cresce de forma considerável. Trabalhar autonomamente não é a mesma coisa para homens, mulheres pobres e da classe média. Grande parte do trabalho das mulheres não se paga. No entanto, sem essa contribuição, as famílias não subsistiriam.
O aumento da pobreza levou à deterioração da qualidade de vida de muitas mulheres, e, mais grave ainda, a modernização da estrutura produtiva e do Estado produziu mudanças profundas no emprego, que afetaram negativamente as mulheres.
O aumento de trabalhadores em setores que, de forma primária, empregam mulheres gerou emprego temporário, instável e mal pago. Sem falar da terceirização, onde se cuida da panela, da criança e do trabalho remunerado.
É evidente que a mudança cultural e econômica operada neste século representou a incorporação de uma massa importante de mulheres à estrutura produtiva. Mas a estratégia de reforma econômica não tem diminuído a tradicional divisão sexual do trabalho nem a persistência da discriminação da mulher.
O ajuste estrutural, apontado pelos governos como uma saída inevitável diante da globalização da economia, gera ``novos pobres'' e tem um impacto direto na condição de vida das mulheres. Os próprios países ricos reconhecem que os ajustes estruturais têm ampliado as desigualdades nos países em desenvolvimento, assim como ``guetos'' em seus próprios países. Para fazer frente a essa situação, estão sendo criadas linhas de combate à pobreza.
Uma delas, à qual estive presente, foi a Cúpula Mundial do Microcrédito, em Washington, que fornece empréstimos de pequeno valor que favorecem a geração de renda para as mulheres.
Até os bancos já perceberam que é um bom negócio emprestar dinheiro às mulheres, pois a taxa mundial de inadimplência é de cerca de 2% a 4%, e as mulheres investem seus ganhos na melhoria da vida dos filhos. Nesse marco, enquanto o número de empregos no setor formal se reduz, o setor informal cresce de forma considerável.
É por isso que, a cada 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, as análises sobre a situação da mulher em nosso país se tornam mais complexas e necessárias. Não é mais possível continuarmos a aceitar como ``normal'' a divisão sexual do trabalho (em nada combatida pela visão neoliberal), que onera as mulheres com a carga de trabalho não-remunerada, justifica as desigualdades salariais e mantém a exclusão da representação feminina nos postos de decisão política e econômica.
Medidas como a de fornecimento de microcrédito, por si, não vão resolver a pobreza estrutural. Mas podem ajudar muitas mulheres e famílias a sair da miséria absoluta.
Nós, legisladores de leis, orçamentos e políticas sociais, é que temos maior responsabilidade em fazer valer esses aportes de crédito com propostas complementares, a fim de que o microcrédito não institucionalize o trabalho informal desprotegido de direitos sociais ou como um ``colchão social'' para amaciar a rebelião dos famintos.
Em 1997, planos e projetos governamentais estaduais e nacionais estarão sendo apresentados às mulheres deste país. Em que marco? No da ``cultura neoliberal do desenvolvimento'', que se baseia na manutenção das desigualdades e encontra, nas crises políticas e econômicas, espaços e formas de manutenção de poder nas mãos de grupos minoritários -hegemonia da população branca e masculina?
É preciso, porém, reconhecer a importância e a persistência da ação das mulheres neste final de século: seus movimentos e organizações buscam ``desierarquizar'' estruturas rígidas, construir novos sentidos de democracia, humanidade, igualdade.
Se os neoliberais sustentam que é preciso inventar coletivamente o futuro, as mulheres estão buscando cumprir essa meta. Mas a grande diferença está aqui: enquanto a visão neoliberal não busca acabar de fato com a cultura da desigualdade, as mulheres organizadas têm denunciado sistematicamente as estruturas que a mantêm e, coletivamente, nestes tempos de crise, elaboram novas formas de análise da realidade, testam novos tipos de convivência, buscam novas saídas econômicas.
Marta Suplicy, 50, é deputada federal pelo PT-SP. É membro das comissões de Saúde e Seguridade Social, Direitos Humanos e Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

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