São Paulo, terça-feira, 07 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Racismo e capitalismo

ARIANO SUASSUNA

Foi em 1955 que escrevi o "Auto da Compadecida". Naquela época, com exceção do admirável "Teatro Experimental do Negro" -criado por Abdias do Nascimento-, os movimentos negros não se tinham, ainda, organizado no Brasil. Brasileiro branco e privilegiado que sou, os poucos acertos que, naquele tempo, me ocorriam ao refletir sobre o racismo originavam-se apenas de uma apaixonada busca da verdade e da justiça -coisa que, graças a Deus, desde muito moço nunca me faltou (às vezes acompanhada por uma indignação nem sempre medida e justa).
Foi a partir da década de 80 que, convivendo com Adelaide Lima, Josafá Mota e outros participantes do Movimento Negro Unificado, passei a ter uma visão mais clara sobre o problema dos negros, no Brasil e no resto do mundo. Passei a frequentar o MNU; e, no curso de uma de suas reuniões, tive oportunidade de ouvir uma verdadeira aula, pronunciada por Joel Rufino dos Santos, que explicou por que a sociedade brasileira encara com tanta naturalidade a tortura (desde, é claro, que praticada contra os pobres, os negros e os desvalidos de qualquer natureza): é que, durante quatro dos cinco séculos do Brasil "branco", a tortura era não só tolerada ou permitida, mas legal e prescrita por documentos oficiais. Chegava-se a discriminar, cuidadosamente, caso a caso, o número de chibatadas e castigos piores que deveriam ser aplicados aos escravos, de acordo com a natureza e a gravidade dos "crimes" que tivessem cometido. "Assim formada" -dizia Joel Rufino dos Santos naquela aula-, "não admira que a sociedade brasileira branca ache que é natural prender e torturar os brasileiros pobres e negros por ela considerados como marginais."
Noutra reunião do MNU, uma moça, Inaldete Pinheiro de Andrade, perguntou-me se, na época em que escrevera o "Auto da Compadecida", eu já era devidamente esclarecido sobre o problema negro. Respondi-lhe que não. E ela retrucou que, mesmo assim, o aparecimento, no palco, do meu Cristo negro fora uma das grandes emoções de sua vida.
Agradecendo suas generosas palavras, contei como chegara a ele. Durante os dias em que escrevia a peça estava acontecendo, nos Estados Unidos, uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças negras nas escolas brancas. Em revide, os brancos racistas organizavam manifestações contra a integração; e eu vi, na revista "Life", a fotografia de um desses comícios: na frente do grupo de "brancos, anglo-saxões e protestantes", uma mulher (aliás, e não por acaso, horrorosamente feia) exibia um cartaz no qual se lia: "Ao criar raças diferentes, Deus foi o primeiro segregacionista".
Foi nesse momento que, movido por uma daquelas indignações a que me referi a princípio, resolvi apresentar como um negro a figura de "Manuel", isto é, a imagem popular do Cristo que iria aparecer em minha peça. E concluo pedindo que se reflita um pouco para ver como são semelhantes, por um lado, a cabeça e o coração da mulher do cartaz e, por outro, a cabeça e o coração daqueles que afirmam que Deus é capitalista porque foi ele quem criou as desigualdades e injustiças do regime que tem no lucro e na produção a qualquer custo seu objetivo fundamental.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O primeiro Carnaval
Próximo Texto: Frases

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.