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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Câmara dos Deputados deve instituir feriado nacional no dia da canonização de frei Galvão?
SIM
Sobre democracia e identidade
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO
A QUESTÃO pode parecer simplória e irrelevante, mas permite uma reflexão sobre pluralismo, secularismo e democracia.
Ao longo da modernidade, no plano
cultural e em certos aspectos do político, a convivência pluralista se construiu negando a expressão efetiva da
diferença na esfera pública e confinando-a ao domínio do privado.
Em particular, todos podem pensar
e agir como querem, mas, em público,
devem ter condutas "politicamente
corretas" e adequadas à convivência
social. O Estado laico moderno buscou uma pluralidade que não questiona efetivamente seus mecanismos de
hegemonia e dominação cultural.
Num processo de secularização, as
expressões religiosas foram vistas como perigosas a esse processo e, confinadas a esse espaço privado, reduzidas a mandamentos moralistas, cada
vez menos incidentes na vida social,
supostamente seriam abandonadas
progressivamente.
Na chamada "pós-modernidade",
contudo, viu-se que o elemento religioso permanecia presente na consciência do ser humano, retornando
com igual força a cada vez que a cultura secular dá mostras de limitações. O
mundo da racionalidade não-religiosa é recheado de esoterismo, livros de
auto-ajuda e movimentos religiosos.
O multiculturalismo relativista
procurou responder a essa situação,
afirmando que todas as posições têm
igual verdade e podem sobreviver
desde que não incomodem as demais.
Mas as identidades culturais são
sufocadas quando privadas da comparação e do confronto consciente
entre si, sendo facilmente dominadas
pela posição cultural hegemônica.
Se todas as posturas são igualmente
verdadeiras (ou igualmente falsas) e
não devem interferir com as demais,
não há por que confrontar e procurar,
na diversidade, as melhores soluções.
Quem já está no poder define, assim,
o que é melhor para o todo.
Numa democracia real, a convivência pluralista implica que todas as posições culturais estejam em permanente diálogo e interação, aceitando o
confronto -para dar-lhe uma dimensão construtiva- e buscando os caminhos mais adequados à realização de
cada um. Isso requer um diálogo intercultural em que as identidades se
comparem e confrontem permanentemente em busca de uma verdade
mais profunda, a partir da qual cada
uma explicita suas particularidades.
Colocados esses pontos, voltemos à
pergunta original. Para o relator do
projeto, senador Jonas Pinheiro
(PFL-MT), o feriado deve permitir
que "os brasileiros fiquem atentos ao
movimento do papa e à canonização
do frei". Realmente a visita do papa
está se revelando, para a sociedade
brasileira, um momento de rediscussão do significado da religiosidade na
vida pessoal e no reconhecimento de
seu papel social.
A questão pode ser aprofundada se
virmos em frei Galvão o líder espiritual e catalisador da sociedade paulista de seu tempo, representante da luta da tradição religiosa local brasileira
contra o secularismo do governo português -o que o torna ainda mais significativo para as discussões atuais.
Essa proposta não pode ser pensada como tentativa de reavivar um
ideal de cristandade, com a igreja
usando de influência política para impor sua hegemonia. Deve ser vista como um momento em que ela -que,
por seu papel histórico, é a principal
representante do sentimento religioso da nação- se coloca como uma das
referências no diálogo cultural e inter-religioso, para ser conscientemente seguida ou negada.
Bento 16 conhece muito bem essa
missão. Sabe que representa uma outra forma de ver a realidade, uma possibilidade de recuperar o fascínio por
um Deus que ama os homens, mesmo
em nosso mundo secularizado.
Cabe aos católicos reviver essa beleza e esse fascínio, assumindo os
compromissos que daí nascem (e em
particular aquele com os mais pobres), e a toda a sociedade brasileira,
assumir esse diálogo de forma fecunda e voltada ao bem de cada ser humano, e não à mera disputa pelo poder e
pela hegemonia.
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo,
é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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