São Paulo, sábado, 07 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Câmara dos Deputados deve instituir feriado nacional no dia da canonização de frei Galvão?

SIM

Sobre democracia e identidade

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO

A QUESTÃO pode parecer simplória e irrelevante, mas permite uma reflexão sobre pluralismo, secularismo e democracia.
Ao longo da modernidade, no plano cultural e em certos aspectos do político, a convivência pluralista se construiu negando a expressão efetiva da diferença na esfera pública e confinando-a ao domínio do privado.
Em particular, todos podem pensar e agir como querem, mas, em público, devem ter condutas "politicamente corretas" e adequadas à convivência social. O Estado laico moderno buscou uma pluralidade que não questiona efetivamente seus mecanismos de hegemonia e dominação cultural.
Num processo de secularização, as expressões religiosas foram vistas como perigosas a esse processo e, confinadas a esse espaço privado, reduzidas a mandamentos moralistas, cada vez menos incidentes na vida social, supostamente seriam abandonadas progressivamente.
Na chamada "pós-modernidade", contudo, viu-se que o elemento religioso permanecia presente na consciência do ser humano, retornando com igual força a cada vez que a cultura secular dá mostras de limitações. O mundo da racionalidade não-religiosa é recheado de esoterismo, livros de auto-ajuda e movimentos religiosos.
O multiculturalismo relativista procurou responder a essa situação, afirmando que todas as posições têm igual verdade e podem sobreviver desde que não incomodem as demais.
Mas as identidades culturais são sufocadas quando privadas da comparação e do confronto consciente entre si, sendo facilmente dominadas pela posição cultural hegemônica.
Se todas as posturas são igualmente verdadeiras (ou igualmente falsas) e não devem interferir com as demais, não há por que confrontar e procurar, na diversidade, as melhores soluções.
Quem já está no poder define, assim, o que é melhor para o todo.
Numa democracia real, a convivência pluralista implica que todas as posições culturais estejam em permanente diálogo e interação, aceitando o confronto -para dar-lhe uma dimensão construtiva- e buscando os caminhos mais adequados à realização de cada um. Isso requer um diálogo intercultural em que as identidades se comparem e confrontem permanentemente em busca de uma verdade mais profunda, a partir da qual cada uma explicita suas particularidades.
Colocados esses pontos, voltemos à pergunta original. Para o relator do projeto, senador Jonas Pinheiro (PFL-MT), o feriado deve permitir que "os brasileiros fiquem atentos ao movimento do papa e à canonização do frei". Realmente a visita do papa está se revelando, para a sociedade brasileira, um momento de rediscussão do significado da religiosidade na vida pessoal e no reconhecimento de seu papel social.
A questão pode ser aprofundada se virmos em frei Galvão o líder espiritual e catalisador da sociedade paulista de seu tempo, representante da luta da tradição religiosa local brasileira contra o secularismo do governo português -o que o torna ainda mais significativo para as discussões atuais.
Essa proposta não pode ser pensada como tentativa de reavivar um ideal de cristandade, com a igreja usando de influência política para impor sua hegemonia. Deve ser vista como um momento em que ela -que, por seu papel histórico, é a principal representante do sentimento religioso da nação- se coloca como uma das referências no diálogo cultural e inter-religioso, para ser conscientemente seguida ou negada. Bento 16 conhece muito bem essa missão. Sabe que representa uma outra forma de ver a realidade, uma possibilidade de recuperar o fascínio por um Deus que ama os homens, mesmo em nosso mundo secularizado.
Cabe aos católicos reviver essa beleza e esse fascínio, assumindo os compromissos que daí nascem (e em particular aquele com os mais pobres), e a toda a sociedade brasileira, assumir esse diálogo de forma fecunda e voltada ao bem de cada ser humano, e não à mera disputa pelo poder e pela hegemonia.


FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo, é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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