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ALBA ZALUAR
Espíritos abalados
EM 29 DE AGOSTO de 2005,
80% da cidade de Nova Orleans foi inundada pelas
águas do Mississippi e do golfo. O
furacão arrancara telhados, destruíra casas e prédios e obrigara os
que tinham veículos a fugir da fúria
da tempestade, aquela que todos
temiam. Os que ficaram ilhados,
muitos mortos, esperaram semanas por ajuda. Nem todos os evacuados, sobretudo os mais brancos
e mais ricos, retornaram; hoje a população da cidade é 40% menor da
que era em 2005. E a cidade ficou
mais negra.
Com a inundação, os serviços
públicos pararam inteiramente,
inclusive o da polícia. Sumiram papéis, processos judiciais, documentos prisionais. Não se sabia mais
quem era bandido, quem era gente
boa. A pilhagem que se seguiu ao
caos durou algum tempo e os jornais logo começaram a falar da alta
criminalidade da cidade.
Em março de 2008, centenas de
brasileiros foram participar de um
congresso sobre o Brasil organizado pela Brasa (nome sugestivo das
primeiras associações do Brasil
com o inferno). Mais concorrida
que as outras reuniões, nesta a
atração da cidade já estava presente desde antes, na inscrição de muito mais trabalhos. Fora das discussões, o Brasil brilhava nos seus ritmos, nas músicas, na capoeira, as
visões do paraíso tropical. Nas discussões, o usual pessimismo dos
americanos com nossos padrões
institucionais, as visões do inferno.
Nas folgas, Big Easy, apelido da
cidade, nos conquistou. A comida,
familiar e surpreendente, nos fez
conhecer novos usos do feijão e do
tempero. E se a comida vem associada à boa música, ao ritmo de
muitas síncopes, aos pés ágeis, a familiaridade e a surpresa são ainda
mais envolventes. As horas de folga
foram aulas da coragem e da resiliência de quem tinha perdido quase todos os bens materiais em um
desastre natural, mas não tinha
deixado morrer o espírito.
A reconstrução da cidade foi
marcada por histórias comoventes
de solidariedade e desprendimento. A cidade voltou a se organizar e
ficou mais cívica, além de recuperar a música irresistível, a boa comida, a gente sorridente.
O desastre que nos abate há três
décadas e que mudou o padrão da
mortalidade no Brasil é de outra
ordem. Feito pelo homem, que trafica armas e drogas, o espírito é o
mais afetado. Pois o dinheiro fácil,
a disposição para matar e a falta de
compaixão com o sofrimento
alheio vão tomando conta dos corações e mentes de nossos jovens.
E seus efeitos mais perversos
desfazem a solidariedade e a participação nas associações vicinais,
hoje meras máquinas de poder dos
donos do crime organizado e do
clientelismo político.
ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras
nesta coluna.
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