São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2008

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ALBA ZALUAR

Espíritos abalados

EM 29 DE AGOSTO de 2005, 80% da cidade de Nova Orleans foi inundada pelas águas do Mississippi e do golfo. O furacão arrancara telhados, destruíra casas e prédios e obrigara os que tinham veículos a fugir da fúria da tempestade, aquela que todos temiam. Os que ficaram ilhados, muitos mortos, esperaram semanas por ajuda. Nem todos os evacuados, sobretudo os mais brancos e mais ricos, retornaram; hoje a população da cidade é 40% menor da que era em 2005. E a cidade ficou mais negra.
Com a inundação, os serviços públicos pararam inteiramente, inclusive o da polícia. Sumiram papéis, processos judiciais, documentos prisionais. Não se sabia mais quem era bandido, quem era gente boa. A pilhagem que se seguiu ao caos durou algum tempo e os jornais logo começaram a falar da alta criminalidade da cidade.
Em março de 2008, centenas de brasileiros foram participar de um congresso sobre o Brasil organizado pela Brasa (nome sugestivo das primeiras associações do Brasil com o inferno). Mais concorrida que as outras reuniões, nesta a atração da cidade já estava presente desde antes, na inscrição de muito mais trabalhos. Fora das discussões, o Brasil brilhava nos seus ritmos, nas músicas, na capoeira, as visões do paraíso tropical. Nas discussões, o usual pessimismo dos americanos com nossos padrões institucionais, as visões do inferno.
Nas folgas, Big Easy, apelido da cidade, nos conquistou. A comida, familiar e surpreendente, nos fez conhecer novos usos do feijão e do tempero. E se a comida vem associada à boa música, ao ritmo de muitas síncopes, aos pés ágeis, a familiaridade e a surpresa são ainda mais envolventes. As horas de folga foram aulas da coragem e da resiliência de quem tinha perdido quase todos os bens materiais em um desastre natural, mas não tinha deixado morrer o espírito.
A reconstrução da cidade foi marcada por histórias comoventes de solidariedade e desprendimento. A cidade voltou a se organizar e ficou mais cívica, além de recuperar a música irresistível, a boa comida, a gente sorridente.
O desastre que nos abate há três décadas e que mudou o padrão da mortalidade no Brasil é de outra ordem. Feito pelo homem, que trafica armas e drogas, o espírito é o mais afetado. Pois o dinheiro fácil, a disposição para matar e a falta de compaixão com o sofrimento alheio vão tomando conta dos corações e mentes de nossos jovens.
E seus efeitos mais perversos desfazem a solidariedade e a participação nas associações vicinais, hoje meras máquinas de poder dos donos do crime organizado e do clientelismo político.


ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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