São Paulo, quarta-feira, 07 de abril de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


As emendas e o soneto

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO


No mundo real, longe do romantismo, democracia é informar e é também não informar, como sugerir o interesse coletivo


A IDEIA de uma relação necessária e imutável entre informação e democracia é só um mito. No mundo real, e longe de suspiros românticos, democracia é informar e é também não informar -como sugerir o interesse coletivo.
Confissões religiosas não devem ser reveladas, nem sigilos profissionais (médicos, advogados), nem a fórmula da Coca-Cola e outros segredos industriais. Independentemente de prazos. O mesmo se dá com situações específicas de Estado: segurança nacional, planos militares, relações internacionais, incluindo correspondência com outros países e documentos sobre fronteiras, também sem prazos certos para acesso do público.
Nos Estados Unidos, segundo o "Freedom of Information Act", esse prazo é o "tempo que as considerações da segurança nacional requererem". Já sagrando a Suprema Corte em 1991, no caso O'Connor x Estados Unidos, que o governo tem poder para bloquear qualquer informação. Com sobras de razão.
No caso das fronteiras, por exemplo, não temos contencioso com nenhum de nossos vizinhos -uma exceção em continente dilacerado por litígios históricos.
O Chile ainda discute o canal de Beagle com a Argentina e duela com o Peru pelo deserto de Atacama, na Corte Internacional de Haia. A Venezuela se confronta com a Colômbia pelo lago de Maracaibo e com a Guiana, reivindicando três quartos de seu território -já inserida essa área na Constituição Bolivariana de 1999.
O Peru litiga com o Equador, na cordilheira de Condor e no vale do Cenepa, e com a Colômbia, na zona do rio Putumayo. Colômbia e Venezuela discutem seus territórios desde a dissolução do Estado da Grã-Colômbia (1830). Guiana e Suriname acabam de ter seus limites definidos pela Corte Internacional de Justiça.
Em cenário assim conturbado, a quem interessa a divulgação desses documentos? Eis a questão. Aos brasileiros? Ou aos países vizinhos, talvez aptos, depois de consultarem esses documentos, a demandar em tribunais internacionais a revisão de nossas fronteiras?
Há consenso na legislação de todos os países sobre esse tema. Apesar disso, corremos o risco de ver convertido em lei o substitutivo do deputado federal Mendes Ribeiro Filho (PMDB-RS) ao projeto de lei 219, que trata de "informações detidas pela administração pública".
No projeto original, algumas dessas informações, inicialmente protegidas por 25 anos, poderiam ter esse prazo sucessivamente prorrogado por uma Comissão de Reavaliação de Informações. A redação é adequada.
Ocorre que o deputado Ribeiro Filho alterou dita redação inicial, por entender ser "inconstitucional a manutenção de informações sigilosas por prazo superior a 50 anos", restando, essas informações, limitadas "a uma única renovação".
A tese do deputado permite ao menos duas observações técnicas. Primeiro, indicando que inconstitucional, à toda evidência, aquela regra do projeto original não é. Assim fosse, todos os sigilos, independentemente de prazos, e pelo só fato de serem sigilo, também o seriam -uma afirmação que nenhum jurista sério subscreveria. Depois, para questionar a magia da quantidade dos anos. Por não ter nenhum sentido, inclusive lógico, considerar que o prazo de 50 anos é constitucional, enquanto 51 (ou mais) deixa de ser.
Para complicar esse quadro, o governo reluta em defender interesses legítimos da nação. Sabe que, para obter um texto equilibrado, bastaria eliminar cinco palavras ("limitado a uma única renovação"), ao fim do artigo 35, III, do substitutivo. Voltando à redação anterior, portanto.
Só que, em vez de manter aquela regra original, pretende apenas alargar esse prazo para 75 anos. Como se tivesse receio de ser tido como defensor de algum tipo de censura. Tudo levando a que uma solução racional sobre o tema, em tempo de palanques eleitorais, talvez seja só uma ilusão perdida. Ou não, queira Deus.


JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 61, pós-graduado pela Universidade Harvard (EUA), é membro do Conselho Curador da TV Brasil. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e da Empresa Brasileira de Notícias, além de secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney).

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