São Paulo, terça-feira, 07 de maio de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O Brasil e os Estados Unidos

Quando o Brasil deixou de ter política exterior, ficou, no lugar dela, com a prática das negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos. Combinação desastrosa. O que convém não é medo: é estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento.
A situação dos entendimentos em torno da Alca revela o paradoxo. Enquanto continuarmos a conduzir nossa relação com os Estados Unidos dentro dos limites de um mercantilismo pontual e despolitizado, todas as soluções serão ruins. Ruim render-nos ao tipo de acordo prefigurado pelas restrições que o Congresso americano impôs às negociações. E ruim ficarmos sozinhos, abraçados a vizinhos que não nos acompanharão numa fuga ao isolamento sul-americano.
A insistência em negociar duramente não bastará para resolver o problema; Estados não são empresas. A solução está em ação política e diplomática que, fundada em novo projeto brasileiro, comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos.
Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil. Maior abertura às nossas exportações depende de acertos com as empresas numerosas e com os muitos Estados americanos que exportam ou querem exportar para nós. Ou que possam colaborar para nossa capacitação tecnológica. Sem tais alianças não derrubaremos barreiras a nossas exportações nem aproveitaremos o potencial do relacionamento com a economia americana.
Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil. Entre esses dois países tão diferentes e tão parecidos, em que a fé no possível esbarra na muralha da desigualdade, há base para parceria que ultrapasse a esfera dos governos e os interesses do dinheiro. Que engaje a sociedade americana em nosso trabalho de redenção social. E que insista, como na União Européia, em vincular mais comércio com maior igualdade. Não podemos calar a voz do egoísmo comercial. Não precisamos deixar que ela fale sozinha.
Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo. A lógica da nossa situação nos exige aproximação econômica, tecnológica e política com os outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia. É o Brasil hoje o país com melhores condições para construir cadeia de entendimentos que una esses países. Que crie contrapeso ao unilateralismo americano. E que amplie oportunidades para trajetórias alternativas de desenvolvimento.
O êxito do pequeno comercialismo depende da sorte da grande política: não realizaremos o primeiro desses três conjuntos de objetivos sem avançar também nos outros dois. Entre o segundo e o terceiro, porém, há tensão. Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.
Daí a delicadeza dessa empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional. E digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck. Na relação com os Estados Unidos, somos, de longe, os mais fracos. Teremos de ser, de longe, os mais clarividentes.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

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