São Paulo, segunda-feira, 07 de maio de 2007

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ALBA ZALUAR

Violência versus compaixão

EM 1968, na Inglaterra dos Beatles e dos sindicatos fortes, uma linda menina de olhos azuis -Mary Bell- foi julgada como adulto quando tinha 11 anos de idade. Ela havia assassinado sem nenhum motivo dois meninos de 3 e 4 anos provavelmente com outra amiga. Mary foi condenada, depois de uma série de reportagens e investigações apressadas em que a sua imagem foi pouco a pouco associada ao demônio. Ela ficou internada até 1980 em várias instituições, todas com o objetivo de recuperar crianças e adolescentes que ali cumprem pena, mas das quais saiu sem conseguir admitir o mal que havia feito. Em 1995 foi procurada por uma escritora interessada em entender por que as crianças matam. Foi nas longas conversas com essa mulher, durante as quais pôde reconstituir o seu passado, inclusive o descaso e a série de abusos sexuais sofridos por ela nas mãos de sua própria mãe com seus namorados, que Mary pôde finalmente um dia reconhecer ser a assassina e acrescentar:
"O que fiz não tem desculpa". Ela havia recuperado sua consciência moral, e os sentimentos da vergonha, da culpa e da compaixão. Não foi apenas a disciplina da instituição, a horta das verduras, o contato com animais, a oficina mecânica, ou as aulas que lhe permitiram atingir esse ponto. Foi algo muito mais profundo.
A diminuição da idade na responsabilidade criminal de 18 para 16 anos poderia diminuir os efeitos da manipulação perversa do Estatuto da Criança e do Adolescente por impedir que jovens nessa faixa de idade sejam usados para garantir a impunidade de maiores. Mas, enquanto as medidas socioeducativas forem mera ficção na letra da lei, enquanto não houver atendimento médico e psicológico a adolescentes tão precocemente comprometidos com a crueldade e a indiferença ao próximo, tal mudança de nada adiantará. Se o sistema de Justiça no Brasil não for capaz de estancar as absurdas taxas de impunidade nos homicídios, se o sistema de punição específica para menores homicidas não tiver meios de lhes devolver a consciência moral mal formada ou desmantelada ao longo de suas abusadas vidas, continuaremos a ver os mesmos jovens a repetir tais atos sem remorso. Falta-lhes empatia, falta-lhes capacidade de avaliar o sofrimento que causam no outro, falta-lhes a fala que permite colocar-se no lugar do outro, ou seja, compaixão. Enquanto isso não acontecer, não resta senão a alternativa da prisão para que outras Lianas não sejam imoladas e não fique apenas o olhar doloroso de seu pai a dizer: foi a minha filha, mas poderia ter sido a sua.


ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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