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São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O estilo do pacifista Lula

BETTY MILAN

O nome de Lula foi cogitado para o Prêmio Nobel da Paz. Será isso porque, no encontro de Davos (em janeiro), ele se opôs à guerra no Iraque, além de propor um pacto mundial pela paz? Porque sustentou, nas cidades de Genebra e de Evian (em maio), a criação de um fundo mundial de combate à fome? Por ter dito, na Espanha (em julho), que o discurso dos países ricos em favor do livre comércio peca por defender a abertura de mercado dos países pobres sem a necessária contrapartida? Por ter insistido nisso na conferência das Nações Unidas (em setembro), afirmando que o protecionismo dos ricos pune os pobres e uma ordem econômica mais justa se impõe?
O conteúdo dos discursos faz de Lula um líder mundial da paz, mas o que o caracteriza como pacifista é um estilo que lhe é próprio e se evidencia claramente num dos seus discursos no Palácio do Planalto. Uma fala para os membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que ali foram debater um documento com o presidente. O texto na mão, Lula diz: "Estava vendo aqui, companheiros sindicalistas, uma frase de vocês que me lembrou de uma história. Aqui está dizendo assim: "redução, é necessária uma redução drástica dos juros". Fico me perguntando por que a palavra drástica; se não bastaria falar redução da taxa de juros".
Além do uso do termo companheiros e do tom coloquial que aproxima, o presidente manifesta a sua estranheza diante da palavra drástica e depois sugere que ela não seja empregada. Prepara o terreno para que um ponto de vista diferente seja escutado e mostra o quão negativa a belicosidade é.
Lula é um pacifista por saber que a paz implica o uso comedido das palavras e por ensinar a paciência. A sua origem social certamente contribui para isso, pois, como dizia Mario de Andrade, a paciência é o sexo do povo brasileiro. O pacifismo do presidente se inscreve, portanto, em nossa tradição.


Lula é um pacifista por saber que a paz implica o uso comedido das palavras e por ensinar a paciência

Uma tradição em que poderia se inspirar o movimento europeu que hoje questiona a pressa gerada pela globalização, o Movimento dos Sem Pressa.
Nasceu com o nome de "Slow Food" e continuou, com o nome de "Slow Europe". Agir sem pressa não significa fazer menos, e sim fazer melhor. Lula sabe que nem tudo se pode e devagar se vai ao longe.
Nem tudo se pode significa, por exemplo, que não se pode ir a Cuba como presidente do Brasil e censurar Fidel Castro publicamente pela repressão aos dissidentes. Possível é proceder como Lula, ou seja, aconselhar Fidel, numa conversa privada, a fazer a abertura política na ilha.
Lula é um pacifista por saber do comedimento, da paciência e por ser amigo do possível. Sem ser oportunista, ele tem o senso da oportunidade.
Ainda que ele goste de citar Gandhi e tenha feito isso durante a ocupação do Iraque -"A violência, quando parece produzir um bem, é um bem temporário, enquanto o mal que faz é permanente"-, o lulismo é completamente diferente do gandhismo.
Para Gandhi, a verdade é a mais elevada das conquistas e ninguém a possui inteiramente. A verdade é Deus e, assim sendo, ele não se submete ao ensinamento de nenhuma religião. "Não quero, diz Gandhi, servir outro Deus que não a verdade".
Além de seguir o ensinamento da religião cristã, de ser um católico praticante, o que Lula privilegia é o acordo. Está comprometido com a verdade, porém sabe que de nada serve sustentá-la em vão -também a verdade tem a sua hora. O presidente poderia, como o psicanalista, dizer: "sobretudo não romper".
Lula é um pacifista à brasileira, nascido numa cultura pragmática e afeita à improvisação. Uma cultura incapaz de conceber, como a indiana, o recurso ao jejum e à mortificação do corpo, recurso a que tantas vezes, para impor o seu ponto de vista, Gandhi se entregou.
Entre Lula e Gandhi, o que existe de comum é a sabedoria de recusar a violência.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de, entre outros livros, "A Paixão de Lia".


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