São Paulo, quarta-feira, 08 de janeiro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Tempos e multidões
ROBERTO ROMANO
Os governos na América do Sul patinam entre formas políticas, jurídicas, econômicas. Eles vão do populismo às doutrinas liberais e destas aos desmandos oligárquicos. Além dos canhões, temos no continente os rosários empunhados por sacerdotes golpistas, as buzinas de automóveis golpistas, as telas de televisão e as ondas golpistas de rádio que maldizem os direitos humanos e agravam desigualdades. Tudo conduz ao paradoxo: massas enormes nas ruas defendem as benesses do "happy few". A primeira onda popular apoiou Vargas e seguiu seu enterro. A segunda, levou Quadros ao Planalto e sumiu com a renúncia. A terceira conduziu Goulart à Presidência e afastou o parlamentarismo num plebiscito. Aglomerados humanos seguiram os comícios do presidente país adentro. Eles evaporaram em 1964. Outras massas ajudaram a derrubar o governo. Movidas por interesses desencontrados -oligárquicos, norte-americanos, religiosos, políticos-, as Forças Armadas destruíram o direito. Milhões, seguindo os generais, gritaram contra as reformas, da agrária à financeira, desta à jurídica. A lista dos cassados inclui Hermes Lima, Mário Covas, Evandro Lins e Silva. A fúria dos delatores, da mordaça na imprensa, do estupro contra os campi foi abafada pelos gritos das Marchas com Deus e pela Liberdade. O governo Goulart era fraco, populista, imprudente, legítimo. Sua queda abriu um ciclo de golpes sangrentos. Sumiram as massas, que coadjuvaram as ordens ditatoriais. Elas não se reuniram para aplaudir o AI-5. Multidões só retornaram para denunciar tiranias. No início era só um punhado de entes humanos que, tendo as Mães da Praça de Maio como exemplo, dos Andes ao Atlântico enfrentou as baionetas na solidão e sob os sarcasmos. O assassinato de Herzog determinou o insustentável. E vieram, agregando mais indivíduos, os atos pelas eleições diretas e a anistia. Esta Folha, em páginas candentes, retratou a nova massa dos cidadãos. A volta ao campo democrático foi lenta. Massas lamentaram Tancredo, outras aplaudiram o aventureiro que sucedeu Sarney. Sob a Carta de 88 existe muito tempo, esperança em demasia, sangue vertido. O governo constitucional erra. A correção deve ser feita em hora certa, definida no mandato que pertence ao povo, soberano. O pior engodo está na ilusão de infalibilidade que torna os governantes prisioneiros de promessas imprudentes, decepcionando quem os escolheu. Massas podem reunir todas as ideologias, interesses religiosos, econômicos. Elas exprimem contradições da sociedade e do Estado, são efêmeros sinais de superfície em que se exteriorizam os desejos e o imaginário dos setores sociais. O diálogo sereno, o rigor da lei, a defesa da soberania, tanto no plano interno quanto no externo, marcam o dirigente democrático. Esperanças devem ser correspondidas. Mas o respeito das multidões não alivia nenhum governo democrático de sua responsabilidade, o compromisso com a existência permanente das pessoas reunidas na sociedade e no Estado de Direito, mesmo à custa de copiosas vaias. Estas são temporárias. Sucesso ao novo governo do Brasil. Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Rodolfo Konder: Hora de redefinições Índice |
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