São Paulo, quarta-feira, 08 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Tempos e multidões

ROBERTO ROMANO

Multidões consagram a posse de Luiz Inácio da Silva. Bom sinal. Mas a prudência exige que os dirigentes não se iludam com o afeto das massas, pois elas mudam com os ventos. A única maneira de manter o seu respeito reside na aplicação do programa exposto durante a campanha eleitoral. E, se algo for impossível, devem ser expostas as razões aos eleitores, sem demagogias ou chantagens arrogantes.
Ninguém espera do PT a imediata democracia social. Mas permanecer nos limites do governo anterior significa trair o mandato popular. Os novos líderes não têm o direito de errar, pelo menos em semelhante ponto.
É costumeira a dialética do palácio e da praça, exposta por N. Bobbio. Do palácio, a praça surge como o lugar das exigências descabidas. Da praça, os eleitos são vistos como iminentes traidores. Ambos têm boas razões em seu favor. Na democracia, o mando é limitado em termos cronológicos. Faltará sempre tempo para satisfazer ministros e governados. Urge não desiludir nenhum deles. Se isso ocorre, a crise previsível possibilita golpes, armados ou de outra ordem, com as massas ou sem elas.
Ditaduras suspendem as transmissões de poder e as garantias das pessoas particulares e oficiais. Elas tentam congelar a temporalidade política e prometem eficácia às turbas. Quem chega ao controle por essa via busca para si a forma excepcional de mando, exige novos registros do tempo. O Reich de mil anos é um exemplo. Além do calendário, golpistas recorrem aos recursos teóricos da legítima defesa, invocados por J. Locke (o símile é de C. Kintzler). No roubo, com possível latrocínio contra mim, uso meios que suspendem os direitos do agressor.
Golpes políticos são expostos como defesa do Estado contra o governo fraco ou tirânico. Excepcionais, eles não se renovam indefinidamente, pois, assim, desapareceriam as ordens estatais e civis. O remédio golpista, rápido e fulminante, mata o suposto doente. A homeopatia democrática requer doses compassadas. É árduo suportar um governo inadequado. Mas a via golpista gera abusos. Em 1964 a Constituição foi rasgada. O pretexto seria a luta contra subversivos e ladrões. Até hoje persiste a improbidade administrativa. Os suspeitos de esquerdismo voltaram ao poder escolhidos em urnas livres.


O pior engodo está na ilusão de infalibilidade que torna os governantes prisioneiros de promessas imprudentes


Os governos na América do Sul patinam entre formas políticas, jurídicas, econômicas. Eles vão do populismo às doutrinas liberais e destas aos desmandos oligárquicos. Além dos canhões, temos no continente os rosários empunhados por sacerdotes golpistas, as buzinas de automóveis golpistas, as telas de televisão e as ondas golpistas de rádio que maldizem os direitos humanos e agravam desigualdades. Tudo conduz ao paradoxo: massas enormes nas ruas defendem as benesses do "happy few".
A primeira onda popular apoiou Vargas e seguiu seu enterro. A segunda, levou Quadros ao Planalto e sumiu com a renúncia. A terceira conduziu Goulart à Presidência e afastou o parlamentarismo num plebiscito. Aglomerados humanos seguiram os comícios do presidente país adentro. Eles evaporaram em 1964.
Outras massas ajudaram a derrubar o governo. Movidas por interesses desencontrados -oligárquicos, norte-americanos, religiosos, políticos-, as Forças Armadas destruíram o direito. Milhões, seguindo os generais, gritaram contra as reformas, da agrária à financeira, desta à jurídica. A lista dos cassados inclui Hermes Lima, Mário Covas, Evandro Lins e Silva. A fúria dos delatores, da mordaça na imprensa, do estupro contra os campi foi abafada pelos gritos das Marchas com Deus e pela Liberdade.
O governo Goulart era fraco, populista, imprudente, legítimo. Sua queda abriu um ciclo de golpes sangrentos. Sumiram as massas, que coadjuvaram as ordens ditatoriais. Elas não se reuniram para aplaudir o AI-5. Multidões só retornaram para denunciar tiranias. No início era só um punhado de entes humanos que, tendo as Mães da Praça de Maio como exemplo, dos Andes ao Atlântico enfrentou as baionetas na solidão e sob os sarcasmos. O assassinato de Herzog determinou o insustentável. E vieram, agregando mais indivíduos, os atos pelas eleições diretas e a anistia.
Esta Folha, em páginas candentes, retratou a nova massa dos cidadãos. A volta ao campo democrático foi lenta. Massas lamentaram Tancredo, outras aplaudiram o aventureiro que sucedeu Sarney. Sob a Carta de 88 existe muito tempo, esperança em demasia, sangue vertido.
O governo constitucional erra. A correção deve ser feita em hora certa, definida no mandato que pertence ao povo, soberano. O pior engodo está na ilusão de infalibilidade que torna os governantes prisioneiros de promessas imprudentes, decepcionando quem os escolheu. Massas podem reunir todas as ideologias, interesses religiosos, econômicos. Elas exprimem contradições da sociedade e do Estado, são efêmeros sinais de superfície em que se exteriorizam os desejos e o imaginário dos setores sociais. O diálogo sereno, o rigor da lei, a defesa da soberania, tanto no plano interno quanto no externo, marcam o dirigente democrático.
Esperanças devem ser correspondidas. Mas o respeito das multidões não alivia nenhum governo democrático de sua responsabilidade, o compromisso com a existência permanente das pessoas reunidas na sociedade e no Estado de Direito, mesmo à custa de copiosas vaias. Estas são temporárias.
Sucesso ao novo governo do Brasil.

Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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