São Paulo, quarta-feira, 08 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Hora de redefinições

RODOLFO KONDER

O século 21 despertou enfurecido, no dia 11 de setembro de 2001. Herdou certamente o temperamento sanguíneo de seu antecessor, o século 20, o mais violento na história da humanidade. Levantou-se da cama com os lençóis empapados de sangue. Mas, talvez, a ferocidade dos ataques terroristas em Nova York e Washington tenha despertado nele a consciência de que, para sobreviver, terá que manter o equilíbrio e enfrentar sérios desafios. Vencê-los ou perecer, eis a questão.
A segunda metade do século passado registrou mudanças aceleradas e profundas nas sociedades e nas relações entre as pessoas. A libertação (ainda parcial) da mulher mudou hábitos e posturas, exigiu inteligência e sensibilidade. A defesa do meio ambiente tornou-se questão de sobrevivência. As novas expectativas de vida exigem informação e planejamento. A urbanização vertiginosa criou tensão e violência. As desigualdades, dentro dos países e no plano mundial, cresceram e nos ameaçam. A tecnologia decolou. As telecomunicações transformaram os cinco continentes numa aldeia global, como previa o canadense Marshall MacLuhan. Os direitos humanos se universalizaram. O acesso ao ensino se democratizou. A economia superou fronteiras.
Hoje, num cenário de devastação ideológica, vivemos um processo chamado globalização, que significa, na verdade, uma fase de reconstrução do mundo. O desmantelamento político causado pelo fim da Guerra Fria nos obriga a escrever um novo capítulo em nossa história. O capítulo da reinvenção, que envolve o abandono de velhos conceitos.


Neste momento, a ira ainda alimenta quase todas as vinhas. A razão bateu em retirada. É tempo de falcões


Aqui, na América Latina, surgem valores compartilhados e obstáculos igualmente comuns. Nações que sulcaram juntas as águas turvas do autoritarismo, das ditaduras militares, aportam agora nas mesmas praias da democracia. Pluripartidarismo, eleições regulares, alternância no poder -o Estado de Direito vale para quase todas.
Elas chegaram ao século 21 trazendo em seus porões cargas semelhantes. Do México à Patagônia, os conquistadores europeus esmagaram os povos nativos e suas cosmogonias, acumularam escravos e espelhos; depois, perderam-se em labirintos de igual desenho totalitário e agora redescobrem juntos a liberdade e a diversidade. Buscam aqui, no continente americano, o que os europeus ainda procuram na Europa: um multiculturalismo solidário. Pregam uma "globalização solidária".
Somente com a ajuda recíproca e organizada entre os diferentes países dos cinco continentes, com o apoio mútuo entre as diversas culturas, com a cooperação entre as inúmeras etnias, com a fraternidade entre as nações que integram os novos blocos e fazem parte da ONU -somente assim- os seres humanos estarão aptos a participar de um processo global de desenvolvimento e a enfrentar, com chances razoáveis de vitória, os riscos do tribalismo, do terrorismo, da droga, do desemprego, das desigualdades crescentes, do fanatismo religioso, da destruição do meio ambiente. Caso contrário, continuaremos a caminhar para o abismo.
O século 21, portanto, pode ser o fim -ou o recomeço. Se despertou enfurecido, no dia 11 de setembro, poderá passar à história como o reencontro da democracia e da paz, a redescoberta da liberdade e dos direitos humanos. Será um novo Holocausto ou a hora das redefinições, o momento sagrado em que os seres humanos vão se reintegrar à natureza, para finalmente sobreviverem com dignidade e sabedoria.
Neste momento, a ira ainda alimenta quase todas as vinhas. A razão bateu em retirada. É tempo de falcões. O futuro uiva como um lobo em nossos quintais ainda enfeitados para o Natal.

Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural do UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (1993-2000) e presidente da seção brasileira da Anistia Internacional (1989-90).


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