São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Marte não ataca

Novas imagens da superfície do planeta Marte estão chegando à Terra, enviadas pela sonda norte-americana Spirit, capaz de se deslocar como um pequeno jipe. São as imagens de sempre, que fazem lembrar um deserto fosco, plano e alaranjado, numa semelhança perturbadora com certos cenários de cartão-postal terrestres.
Já faz quase 30 anos que as primeiras sondas pousaram no planeta vizinho. Apesar da experiência acumulada, a taxa de fracasso nessas missões continua muito alta -nada menos que cerca de metade-, como demonstrou há pouco a agência espacial européia, que perdeu contato com a sonda Beagle 2 depois de ela mergulhar na atmosfera marciana no Natal.
Também não parece ser muito o que já se aprendeu sobre o planeta vermelho. A questão da existência de vida em Marte, que tanto excitou a imaginação das gerações do passado, ainda não foi esclarecida. É provável que existam formas rudimentares de vida microscópica e que o planeta, hoje árido, tenha sido banhado por água no passado. Pouco se sabe a respeito do subsolo e do regime de ventos, que exerce efeito importante na topografia mutante de Marte.
Os antigos associaram os dois planetas vizinhos -Vênus e Marte- respectivamente ao amor e à guerra, como se antecipassem a concepção da psicanálise que dá a esses dois impulsos antagônicos o controle do nosso mundo. Mas a fantasia marciana começou em 1877, quando o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli descobriu o que chamou de "canais" na superfície.
Hoje se sabe que os "canais" são o resultado provável da erosão provocada pelo movimento de água em épocas remotas. Vistos à distância e por meio de telescópios primitivos, porém, seu desenho mostrava tal regularidade que foram tomados por construções erguidas por alguma civilização inteligente. Marte passou a ser uma projeção do "outro" ameaçador.
Durante a Guerra Fria (1945-1989), aos supostos marcianos foram atribuídos de forma inconsciente os traços que marcavam a "ameaça comunista". A analogia não se resumiu à cor vermelha, mas tomou a forma de uma civilização mais "adiantada", na qual os indivíduos seriam reduzidos a meras peças de um maquinismo totalitário e expansionista.
Foi a mesma Guerra Fria, aliás, que deu impulso aos programas espaciais dos americanos e dos soviéticos, ambos menos interessados na chegada à Lua em si do que em seus reflexos propagandísticos na disputa pelo prestígio mundial. Passado o entusiasmo original, a conquista do espaço se revelou uma aventura cara, perigosa e de resultados pouco animadores.
Se as expedições enviadas à Lua serviram para alavancar a guerra ideológica contra a então União Soviética, uma eventual viagem a Marte (fala-se que poderia acontecer daqui a 20 anos) surge como objetivo menos premente, uma cereja no bolo da supremacia norte-americana. Até porque as ilusões foram desfeitas e tudo indica que nossa condição, no sistema solar e talvez na galáxia, para o bem e para o mal, seja profundamente solitária.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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