São Paulo, Sexta-feira, 08 de Janeiro de 1999
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A FHC, as castanhas


A vitória do Real é só premissa para que o presidente se ponha à altura de seu destino e diga a que veio


CANDIDO MENDES

FHC não deixou as angústias ministeriais para a dobra do ano. Trinchou-as antes do peru natalino. E o novo governo faz jus à consciência dos pesos políticos que despontaram da reeleição.
O prestígio de FHC independe do somatório dos partidos que o apóiam e se projeta na confiança sonâmbula da população que nele votou, à busca de um bis ao prodígio do Real. Os partidos em nada engrossam ou endossam a vantagem sobre as oposições, cuja expressão cresceu à margem das legendas confirmadas nas urnas. Evidenciam os 53% da vitória governamental o quanto a multiplicação dos aliancismos nada tem a ver com a distância entre o sim e o não, toda entregue à confiança ou ao descrédito plebiscitário do presidente, ungido para o recomeço. Essa vantagem reduz-se ou se amplia no jogo inteiriço que agora faça FHC diante de um país que perdeu metade de suas reservas no último quadrimestre, de recessão já em casa (ainda que só sussurrada) e de milhões de desempregados.
Doutra parte, o voto nacional contrário a FHC também não se traduz em novo porte das forças de PT, PDT, PPS, PSB ou PC do B. O conjunto dessas legendas fica na mesma marca do quinto dos votos do Congresso, conservando os antagonistas do regime no gueto da impotência e fora de todo papel crítico em perturbar as maiorias do príncipe.
Até onde o ministério casa a reeleição com o passo à frente do novo mandato inaudito, que pede a quebra da estiada prolongadíssima em que nos mantivemos, depois do Real e antes da social-democracia? O lance adiante está na indicação de Celso Lafer para a pasta do Desenvolvimento, cuja prioridade se restabelece, retirado o país dos baús da inércia estabilizadora da moeda.
Ao entregá-la a figura da linha de frente da "intelligentsia" do país, FHC marca a amplitude de uma escolha estratégica. Quer o governo, de fato, inserção ativa na globalização. Enfatiza o diálogo com o comércio e a social-democracia europeus, além de novas conversas com nosso empresariado.
A composição do novo governo não nos poupou, entretanto, da ducha escocesa no gesto de quase enfado com que se buscou nas torrinhas da galeria ministerial a escolha do titular do Trabalho, posto-chave para enfatizar o arranque da social-democracia, juntando ao desenvolvimento o vigor na luta contra o desemprego. Ninguém retirará de Dornelles a superoperância, o supercampeonato de permanência ministerial e a agudeza no entendimento do que seja o recado do chefe. Mas teve de esperar a sua indicação pelo que dissesse a televisão no dia D, como quem acerta no bingo do jogo político, entre tantos possíveis afortunados ou infelizes, diante do fastio do príncipe.
Obra-prima, entretanto, para consolo nosso, é a sabedoria com que, afinal, FHC deu mão única às relações entre o Executivo e a máquina partidária que lhe deveria, supostamente, dar apoio. Essa relação agora depende toda (e só) do presidente, como é só tarefa das maiorias manter-se no seu galho e aí ficar, como lantejoulas do gesto do Natal, até o fim do mandato. Em verdade, o que importa agora é salientar o símbolo de consenso que se soma à Presidência (hegemônica, pessoalmente, no controle da situação). Candidatos à vaga são legião, e é impossível imaginar nos grandes partidos, PFL, PMDB, PPB ou PSDB, que a legenda dessolidarize-se por inteiro do sistema. Demitirá o presidente em cada rusga o ministro da hora para só ser preenchida a ausência de mil novos pretendentes, tal como é impossível ao partido, em bloco, sair do ninho quente (com tantas situações contraditórias nos Estados em que são poder) e da dependência dos sistemas regionais e locais em relação à Federação. No atual estado de coisas, são os partidos reféns do presidente.
O Planalto transforma-se, agora, na "sublime porta" dos governos otomanos, de coxins mil para o situacionismo dos partidos-eunucos instalados nas alfombras do palácio. E mais se esvazia a sua moeda no troca-troca; já passou o tempo das grandes reformas constitucionais e do obstáculo dos três quintos de votos, e cada vez mais é claro o intento do Planalto de governar mais quatro anos sob medida provisória.
Claro, mudam-se esses prognósticos, em princípio, se de fato o governo se lançar à reforma tributária. Porém ela vai de tal forma ao nó do equilíbrio federativo que dificilmente será negociada nos plenários de Brasília, mas dentro da nova política de governadores (e cinco estão do outro lado do fosso, entre eles Itamar), para o desatino de toda previsibilidade política do futuro.
No eixo de um novo recado mobilizador está, por força, o PSDB, que detém a maioria das pastas, somando à sua força das urnas a cota pessoal de FHC. Aí estão, com Paulo Renato e Serra, os ministérios decisivos, Educação e Saúde, para compensar as perplexidades da política de emprego no reforço do matiz social do novo tucanato. Mas é a confiança pessoal que aí redobra; o reforço da legenda no Planalto nada teve a ver com o crescimento relativo do partido nas urnas. A maior bancada do PSDB nascida da eleição, a do Rio, não mereceu contemplação ministerial.
Mais se refina em FHC a fé no amigo, para além da expressão partidária, na escolha de tucanos para repetir ou começar o prodígio do êxito em pastas franciscanas, que, não obstante, refletem a maturidade de uma política de desenvolvimento: Cultura e Ciência e Tecnologia. A multidão das pastas e secretarias permite o luxo de leituras sobre o que pretenda o presidente -inclusive dar partida, para valer, a um programa social-democrático. Mas não há como fugir a uma agenda de pressa histórica. A reeleição encerrou também um plebiscito de impaciência.
A ampulheta do novo quatriênio escoa a advertência de Serjão a FHC. A vitória do Real é só premissa para que o presidente se ponha à altura de seu destino e diga a que veio, depois das arrelias neoliberais, no caminho que dele espera a larga maioria dos governos do Primeiro Mundo, sabedora da verdadeira alternativa do milênio.


Candido Mendes, 70, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, membro da Academia Brasileira de Letras e do Conselho Diretor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e deputado federal pelo PSDB-RJ.



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