São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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HERANÇA DEMAGÓGICA

Seria produtivo -e realista- se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começasse a se conscientizar de que não se encontra mais sobre um palanque de onde pode exercitar sua conhecida verve contra as elites econômicas e o poder público, responsabilizando-os pelas agruras das populações de baixa renda e do país. Aquele Lula dos tempos de oposição, sempre inclinado a proferir "bravatas" contra governantes e "tudo isso que aí está", ocupa hoje o posto de primeiro mandatário da República. O partido que fundou, o PT, já assumiu há anos cargos governamentais em Estados e cidades tão importantes quanto o Rio Grande do Sul e São Paulo.
Não faz, portanto, sentido que, ao visitar tardiamente as vítimas das chuvas no Nordeste, o presidente simplesmente culpe o "descaso do poder público" pela dramática situação encontrada. O poder público, alguém precisa dizê-lo, é hoje por ele encarnado. Desde 2001, em outra localidade anualmente castigada pelas enchentes -a capital paulista-, o Executivo está sob o comando de uma representante do PT. Mesmo que possam ter algum fundo de verdade, diagnósticos desse tipo, que insistem na nota da "herança maldita", poderiam, para benefício de todos, ser substituídos por medidas práticas. Quanto a isso, o governo não tem muito do que se vangloriar.
Segundo levantamento publicado pela Folha, o Ministério da Integração Nacional gastou no ano passado apenas 9,2% de seu orçamento. A outra pasta, a das Cidades, que estaria voltada para a prevenção de problemas ocasionados pelas chuvas, utilizou em 2003 pouco menos de 20% do orçado. São cifras inexpressivas. Prevaleceu até aqui, na área social, um misto de improvisação e voluntarismo com resultados pífios.
O presidente tem se valido de sua reconhecida capacidade retórica para estabelecer um contato mais direto com a população. Num contexto em que alternativas políticas convincentes não se apresentam -Lula era uma espécie de "última esperança"-, é natural que a sociedade se mostre mais paciente na expectativa de que a aposta na mudança venha a dar frutos. Não há, porém, como deixar de observar o crescente contraste entre o mundo encantado que se desenrola nos discursos presidenciais e o desencanto que vai se apoderando de muitos ao constatar que a realidade continua a mesma.
O risco dessa situação é a tendência de o governo partir para a demagogia, buscando uma aliança sentimental com a população carente, na qual ambos se irmanam como vítimas da história -e não como agentes, que deveriam ser, da mudança.



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