São Paulo, sábado, 8 de março de 1997.

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A CPI dos Precatórios deve se estender a todo o sistema financeiro?

NÃO
Cada comissão é uma comissão

ÉLCIO ÁLVARES
A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga o mau uso das autorizações contidas em projetos que tiveram por objeto os precatórios, a exemplo de comissões anteriores, ocupa amplo espaço nos jornais, rádios e televisões.
Apesar do resultado positivo já alcançado, em função de ter tornado pública uma manobra que visava desviar dinheiro do erário para o bolso de particulares inescrupulosos, ela, a CPI, suscita vários debates, sendo o principal deles o da competência em razão da matéria.
A CPI foi criada por meio do requerimento número 1.101, de 1996, para, no prazo de 90 dias, apurar irregularidades relacionadas à autorização, à emissão e à negociação de títulos públicos estaduais e municipais, nos exercícios de 1995 e 1996, no que diz respeito à existência de documentação forjada e irregularidades nos pedidos e concessões de autorização para emissão de títulos públicos, feitos ao Senado Federal pelos Estados e municípios. E ainda a existência de dolo ou culpa nos procedimentos de autorização, emissão e negociação de títulos estaduais e municipais.
Portanto, fatos determinados no âmbito dos municípios e dos Estados, conforme explicitado no requerimento assinado por senadores em número suficiente para constituir a CPI.
Incluí-me entre os signatários por entender que esse é o posicionamento do governo, ou seja, o de investigar a fundo atos que devam ser esclarecidos à sociedade.
Recentemente, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, teve a oportunidade de afirmar que a CPI tem um objetivo definido rigorosamente dentro do que dispôs o pedido inicial dos senadores. E, se todo o sistema financeiro fosse investigado, estaríamos perdendo foco e caminhando pouco.
Com propriedade, o ministro concluiu que, quando absolutamente tudo está sob investigação, nada está sob investigação.
A CPI, com o desenvolvimento das ações investigatórias, está atingindo inteiramente o objeto a que se propôs, qual seja, o de apurar negócios escusos à margem dos precatórios.
No entanto, a posição de alguns, demonstrada em pronunciamentos e entrevistas, de que a comissão deveria avançar na investigação de negócios praticados no sistema financeiro, não encontra respaldo legal no requerimento que deu origem às apurações.
Além disso, cada comissão é uma comissão. Esta foi criada para discutir precatórios. Deve se limitar a essa matéria.
Para criar uma CPI que investigue o sistema financeiro é fundamental constatar um fato concreto dentro do sistema. Sem isso, não há o que cogitar. Nem falar em extensão de comissão. A que está em vigor deve cumprir seu dever, pois tem prazo definido. Cumprido seu ciclo, encaminha suas conclusões para o Ministério Público, para os fins previstos na lei.
É importante frisar também o trabalho da imprensa, que tem sido investigativa.
Mas os membros da comissão não podem perder de vista uma coisa: a CPI tem poderes judicantes. E qualquer prejulgamento feito por intermédio dos veículos de comunicação poderia colocar em risco todo o trabalho da comissão.
Não podemos partir para o perigoso terreno do prejulgamento, sob pena de dar a alguns dos atingidos o direito de recorrer a medidas judiciais. Esse cuidado é fundamental.
Portanto, a CPI deve apurar os fatos, e, se houver fato determinado no sistema financeiro, pinçá-lo para outra investigação. Com o amadurecimento institucional por que passa o Brasil, devemos, no mínimo, ter bom senso.
Élcio Álvares, 65, é senador pelo PFL-ES e líder do governo no Senado Federal. Foi ministro de Indústria e Comércio (governo Itamar Franco).

SIM
Os riscos da especificidade

LAURO CAMPOS
À medida que a sociedade se torna dividida entre uma elite cercada de privilégios e a massa dos excluídos, as leis deixam de ser canais e garantias de ação popular em direção à conquista da liberdade com respeito mútuo para ser um dos ingredientes que selam e ``legitimam'' o sistema das injustiças que se tornaram normais.
Ali, e quando o próprio acesso ao tribunal se transforma em privilégio de que desfrutam apenas os que podem pagar e esperar as decisões formais, as leis passam a ser uma ameaça que a minoria brande contra a maioria marginalizada: ``Aos amigos, pão; aos adversários, a lei'', ainda que a lei não passe de espúria medida provisória aprovada por um Legislativo que se destrói a cada ato de subserviência ao déspota.
Em tempo de chuva, todo sinal é de chuva, diz a sabedoria caipira das Minas Gerais. Em época de despotismo esclarecido a que chegamos, como profetizara o mestre Fernando Henrique Cardoso à página 20 de seu livro ``Autoritarismo e Democratização'', é natural que não só as regras legais, mas a sua interpretação assumam a forma do vaso autoritário em que estão imersas.
Quando o regimento do Senado, em seu artigo 145, determina que as CPIs versem sobre ato ou fato específico, a exegese do texto pode impedir sua aplicação. Foi em nome do respeito à ``especificidade'' que muitas CPIs foram paralisadas, congeladas em espaços tão acanhados que o processo investigatório murchou a ponto de seus resultados ``darem em pizza''.
Se os doutos hermeneutas que pretendem ``cumprir à risca'' o preceito, interpretando-o restritivamente, participassem de uma investigação sobre o ponto, que deve ser algo simples e ``específico'', ver-se-iam em palpos de aranha e acabariam encerrando suas investigações antes de começá-las: se o ponto é definido como interseção entre duas retas, e a douta Comissão deveria se limitar ao exame do ponto, não poderia sequer iniciar sua investigação, porque ultrapassaria, desde o início, a especificidade do ponto.
Como a reta é uma sequência de pontos, os hermeneutas da ``especificidade'' do objeto da pesquisa se perderiam num círculo vicioso insolúvel.
Como todo fenômeno é ele próprio e suas circunstâncias, como os desvios, os crimes, as fraudes que as CPIs devem apurar não são seres de laboratório, puros, assépticos, isolados, mas ações humanas complexas, que envolvem necessariamente várias práticas criminosas, cometidas em diversas esferas do poder, dentro e fora do território nacional, com conotações econômicas, políticas, financeiras, jurídicas, o objeto de exame de uma CPI não pode ser considerado específico no sentido que alguns pretendem dar.
É verdade que uma investigação muito abrangente, que colocasse na mesma CPI a dívida pública interna e externa, o narcotráfico, a prostituição juvenil, a impunidade dos crimes contra os trabalhadores rurais, o contrabando, a conivência do Banco Central ou do Senado com as dívidas públicas e os precatórios etc. não poderia apurar todas as tristezas do mundo.
Por outro lado, não se pode cair no erro oposto, qual seja, o de exigir que a CPI se restrinja à ``especificidade'' do objeto a ser investigado.
O fenômeno específico, individual, é, na realidade, parte da totalidade composta de diversas partes (momentos), que guardam, entre si, relações de mútua dependência, exclusão recíproca e polarização. O específico é ele e suas condições e circunstâncias.
Como se pode examinar e comprovar os crimes praticados por Estados e prefeituras na emissão de letras dos respectivos tesouros -vendidas por corretores no ``mercado'', composto por bancos e instituições financeiras, que são compradores e vendedores dos títulos públicos, cuja emissão se legitima em sentenças judiciais transitadas em julgado, que deveriam ser fiscalizadas na emissão e na circulação pelo Banco Central e analisadas e referendadas ou não pelo Senado- sem romper os limites da especificidade?
A bancocracia brasileira possui como uma de suas características fundamentais o fato de que o sistema financeiro se coloca num espaço supralegal, reino dos crimes do colarinho branco.
Todas as vezes que uma CPI tenta pisar no espaço do sistema financeiro, é expulsa daquele sagrado território dominado pelo grupo de agiotas. A exigência da ``especificidade'' do objeto de uma CPI não deveria se transformar num escudo que protege os corruptos e garante sua impunidade.
O absurdo de não permitir que a CPI dos corrompidos, dos anões colloridos, por ser ``específica'', investigasse e punisse o outro lado, seu complemento necessário, os corruptores -empreiteiras e banqueiros-, não deveria se repetir, sob pena de maior desmoralização do Poder Legislativo.
Lauro Campos, 66, economista, é senador pelo PT-DF e professor da UnB (Universidade de Brasília).

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