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A CPI dos Precatórios deve se
estender a todo o sistema financeiro?
NÃO
Cada comissão é uma comissão
ÉLCIO ÁLVARES
A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga o mau uso das autorizações contidas em projetos que tiveram por objeto os precatórios, a exemplo de comissões anteriores, ocupa amplo espaço nos jornais, rádios e televisões.
Apesar do resultado positivo já alcançado, em função de ter tornado pública
uma manobra que visava desviar dinheiro do erário para o bolso de particulares inescrupulosos, ela, a CPI, suscita vários debates, sendo o principal
deles o da competência em razão da
matéria.
A CPI foi criada por meio do requerimento número 1.101, de 1996, para, no
prazo de 90 dias, apurar irregularidades relacionadas à autorização, à emissão e à negociação de títulos públicos
estaduais e municipais, nos exercícios
de 1995 e 1996, no que diz respeito à
existência de documentação forjada e
irregularidades nos pedidos e concessões de autorização para emissão de títulos públicos, feitos ao Senado Federal
pelos Estados e municípios. E ainda a
existência de dolo ou culpa nos procedimentos de autorização, emissão e negociação de títulos estaduais e municipais.
Portanto, fatos determinados no âmbito dos municípios e dos Estados,
conforme explicitado no requerimento
assinado por senadores em número suficiente para constituir a CPI.
Incluí-me entre os signatários por entender que esse é o posicionamento do
governo, ou seja, o de investigar a fundo atos que devam ser esclarecidos à
sociedade.
Recentemente, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, teve a oportunidade
de afirmar que a CPI tem um objetivo
definido rigorosamente dentro do que
dispôs o pedido inicial dos senadores.
E, se todo o sistema financeiro fosse investigado, estaríamos perdendo foco e
caminhando pouco.
Com propriedade, o ministro concluiu que, quando absolutamente tudo
está sob investigação, nada está sob investigação.
A CPI, com o desenvolvimento das
ações investigatórias, está atingindo inteiramente o objeto a que se propôs,
qual seja, o de apurar negócios escusos
à margem dos precatórios.
No entanto, a posição de alguns, demonstrada em pronunciamentos e entrevistas, de que a comissão deveria
avançar na investigação de negócios
praticados no sistema financeiro, não
encontra respaldo legal no requerimento que deu origem às apurações.
Além disso, cada comissão é uma comissão. Esta foi criada para discutir
precatórios. Deve se limitar a essa matéria.
Para criar uma CPI que investigue o
sistema financeiro é fundamental constatar um fato concreto dentro do sistema. Sem isso, não há o que cogitar.
Nem falar em extensão de comissão. A
que está em vigor deve cumprir seu dever, pois tem prazo definido. Cumprido seu ciclo, encaminha suas conclusões para o Ministério Público, para os
fins previstos na lei.
É importante frisar também o trabalho da imprensa, que tem sido investigativa.
Mas os membros da comissão não
podem perder de vista uma coisa: a CPI
tem poderes judicantes. E qualquer
prejulgamento feito por intermédio
dos veículos de comunicação poderia
colocar em risco todo o trabalho da comissão.
Não podemos partir para o perigoso
terreno do prejulgamento, sob pena de
dar a alguns dos atingidos o direito de
recorrer a medidas judiciais. Esse cuidado é fundamental.
Portanto, a CPI deve apurar os fatos,
e, se houver fato determinado no sistema financeiro, pinçá-lo para outra investigação. Com o amadurecimento
institucional por que passa o Brasil, devemos, no mínimo, ter bom senso.
Élcio Álvares, 65, é senador pelo PFL-ES e líder do governo no Senado Federal. Foi ministro de Indústria e Comércio (governo Itamar Franco).
SIM
Os riscos da especificidade
LAURO CAMPOS
À medida que a sociedade se torna dividida entre uma elite cercada de privilégios e a massa dos excluídos, as leis
deixam de ser canais e garantias de
ação popular em direção à conquista da
liberdade com respeito mútuo para ser
um dos ingredientes que selam e ``legitimam'' o sistema das injustiças que se
tornaram normais.
Ali, e quando o próprio acesso ao tribunal se transforma em privilégio de
que desfrutam apenas os que podem
pagar e esperar as decisões formais, as
leis passam a ser uma ameaça que a minoria brande contra a maioria marginalizada: ``Aos amigos, pão; aos adversários, a lei'', ainda que a lei não passe
de espúria medida provisória aprovada
por um Legislativo que se destrói a cada
ato de subserviência ao déspota.
Em tempo de chuva, todo sinal é de
chuva, diz a sabedoria caipira das Minas Gerais. Em época de despotismo
esclarecido a que chegamos, como profetizara o mestre Fernando Henrique
Cardoso à página 20 de seu livro ``Autoritarismo e Democratização'', é natural que não só as regras legais, mas a
sua interpretação assumam a forma do
vaso autoritário em que estão imersas.
Quando o regimento do Senado, em
seu artigo 145, determina que as CPIs
versem sobre ato ou fato específico, a
exegese do texto pode impedir sua aplicação. Foi em nome do respeito à ``especificidade'' que muitas CPIs foram
paralisadas, congeladas em espaços tão
acanhados que o processo investigatório murchou a ponto de seus resultados
``darem em pizza''.
Se os doutos hermeneutas que pretendem ``cumprir à risca'' o preceito,
interpretando-o restritivamente, participassem de uma investigação sobre o
ponto, que deve ser algo simples e ``específico'', ver-se-iam em palpos de aranha e acabariam encerrando suas investigações antes de começá-las: se o
ponto é definido como interseção entre
duas retas, e a douta Comissão deveria
se limitar ao exame do ponto, não poderia sequer iniciar sua investigação,
porque ultrapassaria, desde o início, a
especificidade do ponto.
Como a reta é uma sequência de pontos, os hermeneutas da ``especificidade'' do objeto da pesquisa se perderiam
num círculo vicioso insolúvel.
Como todo fenômeno é ele próprio e
suas circunstâncias, como os desvios,
os crimes, as fraudes que as CPIs devem apurar não são seres de laboratório, puros, assépticos, isolados, mas
ações humanas complexas, que envolvem necessariamente várias práticas
criminosas, cometidas em diversas esferas do poder, dentro e fora do território nacional, com conotações econômicas, políticas, financeiras, jurídicas,
o objeto de exame de uma CPI não pode ser considerado específico no sentido que alguns pretendem dar.
É verdade que uma investigação muito abrangente, que colocasse na mesma
CPI a dívida pública interna e externa,
o narcotráfico, a prostituição juvenil, a
impunidade dos crimes contra os trabalhadores rurais, o contrabando, a conivência do Banco Central ou do Senado com as dívidas públicas e os precatórios etc. não poderia apurar todas as
tristezas do mundo.
Por outro lado, não se pode cair no
erro oposto, qual seja, o de exigir que a
CPI se restrinja à ``especificidade'' do
objeto a ser investigado.
O fenômeno específico, individual, é,
na realidade, parte da totalidade composta de diversas partes (momentos),
que guardam, entre si, relações de mútua dependência, exclusão recíproca e
polarização. O específico é ele e suas
condições e circunstâncias.
Como se pode examinar e comprovar
os crimes praticados por Estados e prefeituras na emissão de letras dos respectivos tesouros -vendidas por corretores no ``mercado'', composto por
bancos e instituições financeiras, que
são compradores e vendedores dos títulos públicos, cuja emissão se legitima
em sentenças judiciais transitadas em
julgado, que deveriam ser fiscalizadas
na emissão e na circulação pelo Banco
Central e analisadas e referendadas ou
não pelo Senado- sem romper os limites da especificidade?
A bancocracia brasileira possui como
uma de suas características fundamentais o fato de que o sistema financeiro
se coloca num espaço supralegal, reino
dos crimes do colarinho branco.
Todas as vezes que uma CPI tenta pisar no espaço do sistema financeiro, é
expulsa daquele sagrado território dominado pelo grupo de agiotas. A exigência da ``especificidade'' do objeto
de uma CPI não deveria se transformar
num escudo que protege os corruptos e
garante sua impunidade.
O absurdo de não permitir que a CPI
dos corrompidos, dos anões colloridos,
por ser ``específica'', investigasse e punisse o outro lado, seu complemento
necessário, os corruptores -empreiteiras e banqueiros-, não deveria se
repetir, sob pena de maior desmoralização do Poder Legislativo.
Lauro Campos, 66, economista, é senador pelo PT-DF e
professor da UnB (Universidade de Brasília).
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