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TENDÊNCIAS/DEBATES
DIA INTERNACIONAL DA MULHER
Por uma nova ordem simbólica
ROSE MARIE MURARO
Cada espécie animal percebe o
real segundo a vida que lhe é peculiar. A espécie humana relaciona-se
com ele por meio de seus sistemas simbólicos. E é exatamente por esse motivo
que ela é a única espécie que o pode
transformar. Mas, embora a capacidade
de simbolizar seja inata, seu uso varia ao
longo dos tempos.
É pelos sistemas simbólicos que os seres humanos pensam, falam, se comunicam e criam as suas leis de comportamento e, portanto, os seus sistemas sociais, políticos e econômicos. Esses sistemas variaram muito nos 2 milhões de
anos de vida de nossa espécie, principalmente nos últimos 10 mil anos do nosso
período histórico. O grande erro dos
pensadores foi tomar os sistemas, que
foram socialmente construídos, como
biológicos e imutáveis.
Isso aconteceu, por exemplo, com os
psicólogos do fim do século 19 e do início do século 20, principalmente Freud
e Lacan. Freud afirma que a natureza foi
madrasta com a mulher porque ela não
tem a capacidade de simbolizar como o
homem.
Lacan afirma que o simbólico é masculino e que "a mulher não existe". Não
existe porque não tem acesso à ordem
simbólica. A palavra pertence ao homem e o silêncio pertence à mulher. Segundo ele, o simbólico é estruturado pela cadeia de significantes na qual o grande organizador é o falo. Este, ao mesmo
tempo, é metáfora do órgão sexual masculino e do poder. O poder -que é essencialmente masculino- é o "grande
outro", ao qual, implícita ou explicitamente, todos os atos simbólicos humanos se referem. Incluem-se aí os pensamentos, os gestos, as leis e até os sistemas macro (políticos e econômicos).
E, de fato, ele tem razão. A realidade
humana é gendrada (gendered), como
gendrados somos todos nós. Todos os
sistemas simbólicos atuais foram sendo
fabricados pelos -e para os- homens.
Leis, gramática, crenças, filosofia, dinheiro, poder político e econômico.
Na última metade do século 20, no entanto, algo novo aconteceu. Os dois
grandes resultados da sociedade de
consumo são a entrada da mulher no
mercado mundial de trabalho -uma
vez que o sistema fez mais máquinas do
que machos- e a destruição dos recursos naturais -porque os retirou da natureza num ritmo mais acelerado do
que capacidade de reposição dela.
As mulheres já estão
entrando nos sistemas
simbólicos masculinos;
ajudando a desconstruir a
ordem universal de poder
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As mulheres entram nos sistemas
simbólicos masculinos no momento
em que esses estão se mostrando implacavelmente destrutivos em relação à vida. A tarefa monumental que os movimentos de mulheres e as mulheres têm
hoje é a de construir uma nova ordem
simbólica não mais centrada sobre o falo (o poder, o matar ou morrer que é a
sua lei), mas uma nova ordem que possa permear desde o inconsciente individual até os sistemas macroeconômicos,
mas. Mas, agora, uma nova ordem estruturada sobre a vida.
Essas reflexões não poderiam estar
sendo feitas se esse trabalho já não estivesse em curso. Já estão sendo construídos consensos entre os povos contra
uma dominação global que exclui o
grosso da humanidade e sobre uma nova ordem que inclua uma relação complementar entre os gêneros, uma família democrática, um tipo de relação econômica que não transfira a riqueza de
todos para os poucos que dominam,
que inclua relações comerciais e econômicas menos desumanas e destrutivas.
As mulheres já estão entrando nos sistemas simbólicos masculinos. E não só
nas instituições convencionais (empresas, partidos etc.), mas também em outras, muitas vezes na contramão da história (nas lutas populares, ecológicas,
pela paz etc., onde são a grande maioria). Elas estão construindo uma nova
ordem simbólica, na qual o "grande outro" é a vida (viver e deixar viver), e ajudando a desconstruir a atual ordem universal de poder.
Se não trabalharmos nessa profundidade, por mais que se transformem as
estruturas econômicas antigas, elas tenderão a voltar. Ou substituímos a função estruturante do falo pela função estruturante da vida ou não teremos mais
nem falo nem vida.
Rose Marie Muraro, 70, escritora, é fundadora
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
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