UOL




São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OTAVIO FRIAS FILHO

Buena onda

É uma ironia que a Argentina passe por uma das piores crises de sua atribulada história quando o cinema argentino, ao contrário, atinge seu apogeu. Depois do cinema iraniano, depois do cinema chinês, chegou a vez de os filmes da "buena onda" (expressão que às vezes agrega também a leva mais recente de fitas brasileiras e mexicanas) merecerem atenção mundial. Dois deles estão em cartaz em São Paulo. "O Filho da Noiva" comove platéias com seu austero sentimentalismo. "Kamchatka" conta certo episódio da instalação do regime militar (1976-1983) pelo prisma do filho de um casal perseguido. É dirigido por Marcelo Piñeyro, o mesmo autor de "Plata Quemada", outro sucesso de estima nas salas brasileiras, caso também de "Nove Rainhas". A economia vai mal, mas o cinema vai bem. Seria um erro imaginá-los separados em dois mundos à parte, no entanto, porque esse cinema se debruça sobre a crise. Ao revelar que a prosperidade dos argentinos era falsa e quebrar sua identidade como povo bem-sucedido, a crise possibilitou ao cinema uma fresta por onde examinar a própria medula do país. Para uma nação acostumada a projetar uma aura de arrogância (fruto de relativa superioridade num continente pobre), é um admirável exercício de humildade ver-se assim exposta. Sua cultura "européia" se desmancha nos expedientes da malandragem ("Nove Rainhas"), a estabilidade das famílias desmorona num cotidiano mesquinho e avaro ("O Filho da Noiva"). O que torna os filmes da "buena onda" tão interessantes é a forma oblíqua pela qual captam esse processo histórico, coletivo. Em vez de retratá-lo em sua dimensão épica -como se fez num filme mais antigo, "Historia Oficial"-, adotam um ponto de vista interessado nas suas ramificações, nas capilaridades em que as pessoas continuam a viver e lutar. "Kamchatka" não faz desaparecer a pesada carga política a oprimir seus personagens, que está ali como pano de fundo ameaçador. Mas o espectador só pode percebê-la por meio da decifração de sinais empreendida por uma criança, que se torna consciente ao completá-la. A inclinação desse cinema é projetar toda a sua ênfase nos reflexos da crise sobre as relações de família. Seu ancestral parece ser o cinema italiano do pós-Guerra. Como aquele, este é um cinema de grande dimensão humanitária, que acompanha seus protagonistas na descida ao inferno do empobrecimento, da humilhação e do medo para arrancar de sua capacidade de ainda assim existir -"resistir em Kamchatka"- e amar uma razão para redimi-los.
 
Um detalhe passou batido no artigo em que José Saramago rompia com a repressão em Cuba. O texto começava e terminava com a enigmática frase "Até aqui cheguei". Como o escritor não esteve em coma nos últimos 40 anos, conclui-se que aprovava a repressão, mas deixou de fazê-lo. Por quê? Não é mais necessária? Não adianta mais? Caiu de moda? Parafraseando Clemenceau, a política é assunto demasiado sério para ficar a cargo de intelectuais.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Oferta e procura
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.