São Paulo, segunda-feira, 08 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A fragmentação da América Latina


Apesar dos discursos sobre a integração do continente, o que vem se evidenciando é sua crescente fragmentação

BORIS FAUSTO

A nacionalização do gás e do petróleo pelo presidente boliviano Evo Morales, com aparato militar e exacerbação do clima nacionalista, é em si mesmo um fato grave, mas que se insere em um quadro sombrio mais amplo. Na verdade, apesar dos infindáveis discursos sobre a integração do continente, o que vem se evidenciando é sua crescente fragmentação.
Embora o alcance e as conseqüências da nacionalização estejam ainda longe de serem percebidos em toda sua extensão, algumas coisas já se tornaram claras. Dentre elas, a falta de percepção do governo brasileiro do que estava para acontecer, explicável -quem sabe- por resquícios saudosos do terceiro-mundismo, acrescidos do esquecimento do conhecido adágio segundo o qual em política internacional não há amigos, mas interesses.
O episódio mostrou a profundidade dos laços que unem Fidel Castro, Hugo Chávez e Evo Morales -um trio em que se combinam o vetusto comunismo de um deles com os arroubos populistas dos dois outros. Convém lembrar que Evo Morales, admirador da "democracia consensual" cubana, incorporou-se à chamada "Alternativa Bolivariana para as Américas" (Alba), imaginada por Chávez e Castro em dezembro de 2004. Convém lembrar ainda que o ato de nacionalização, que redundará em algum grau de expropriação, maior ou menor, ocorreu logo depois de o presidente boliviano regressar de Havana, onde assinou com os outros membros do trio um acordo pomposamente chamado de "Tratado de Comércio dos Povos".
Estes e outros fatos apontam para a já referida fragmentação dos países da América Latina, como não é difícil perceber. O Mercosul é hoje uma instituição em crise aguda, ou terminal para os mais pessimistas, pouco ou nada restando de seus propósitos originais, a ponto de Uruguai e Argentina estarem se digladiando em torno da instalação de uma fábrica de papel em território uruguaio, junto à fronteira com a Argentina. Por acréscimo, cada vez mais ganham vulto as notícias de que o governo de esquerda do presidente Tabaré Vázquez se dispõe a firmar um tratado bilateral de comércio com os EUA, diante da paralisia do Mercosul.
Por sua vez, Chávez dispõe-se a abandonar a Comunidade Andina, dando mais um passo em seus planos hegemônicos, com base na circunstância de que Peru e Colômbia se inclinaram a assinar acordos com os Estados Unidos. Afora isso, o presidente venezuelano interfere na política interna de outras nações, ao arremeter com palavras grosseiras contra o presidente peruano, Alejandro Toledo, e o candidato aprista, Alan Garcia, às eleições presidenciais daquele país, enquanto declara, ao mesmo tempo, seu apoio à eleição do ex-militar nacionalista Ollanta Humala e à reeleição do presidente Lula.
Diante desse quadro, crescem as responsabilidades do Brasil no plano das relações latino-americanas. Entretanto, infelizmente, os precedentes não nos induzem ao otimismo, diante da soma de incompreensões e fracassos da política externa brasileira. A suposta "hegemonia natural" do Brasil na América do Sul, cantada e decantada pelo atual governo em seus primeiros tempos, potencializou as rivalidades entre nosso país e a Argentina, servindo apenas para que o presidente Néstor Kirchner obtivesse um trunfo importante na afirmação interna de sua popularidade. A obsessão de alcançar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, hoje meio esquecida, reforçou, em vários países, a percepção dos propósitos hegemônicos do Brasil, que hoje parecem risíveis. Por sua vez, a inclinação por Castro, Chávez e Morales, a que não são estranhas as tintas ideológicas, resultou no que se está vendo -no embaraço, na surpresa, no desmentido de que "amor com amor se paga".
As responsabilidades do Brasil não se limitam aos problemas com a Bolívia, por mais importantes que eles sejam. É até possível que se chegue a um acordo com aquele país, apesar das muitas complicações, se um mínimo de realismo prevalecer no governo boliviano, quando arrefecer o clima de euforia patriótica que tomou conta do país, com inegáveis dividendos políticos. Mas é visível que a política e o estilo dos "três mosqueteiros" concorrem permanentemente para estrangular o regime democrático, ou deteriorá-lo, por meio de fatos insólitos e pela constante alimentação de um clima de bravatas e ameaças que geram, em grande medida, a instabilidade do continente.
Não podemos entrar nessa onda. Pelo seu peso regional, o Brasil tem um importante papel a cumprir, não no sentido de uma "hegemonia" imposta, e sim no de adotar uma postura de afirmação da democracia, de equilíbrio e firmeza no trato das questões internacionais, assim como de propor e adotar medidas conjuntas positivas que atendam as populações. Terá o atual governo autoridade, clareza e capacidade para tanto?


Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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