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TENDÊNCIAS/DEBATES
A fragmentação da América Latina
Apesar dos discursos sobre a integração do continente, o que vem se evidenciando é sua crescente fragmentação
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BORIS FAUSTO
A nacionalização do gás e do
petróleo pelo presidente boliviano
Evo Morales, com aparato militar e exacerbação do clima nacionalista, é em si
mesmo um fato grave, mas que se insere
em um quadro sombrio mais amplo. Na
verdade, apesar dos infindáveis discursos sobre a integração do continente, o
que vem se evidenciando é sua crescente fragmentação.
Embora o alcance e as conseqüências
da nacionalização estejam ainda longe
de serem percebidos em toda sua extensão, algumas coisas já se tornaram claras. Dentre elas, a falta de percepção do
governo brasileiro do que estava para
acontecer, explicável -quem sabe-
por resquícios saudosos do terceiro-mundismo, acrescidos do esquecimento do conhecido adágio segundo o qual
em política internacional não há amigos, mas interesses.
O episódio mostrou a profundidade
dos laços que unem Fidel Castro, Hugo
Chávez e Evo Morales -um trio em
que se combinam o vetusto comunismo
de um deles com os arroubos populistas
dos dois outros. Convém lembrar que
Evo Morales, admirador da "democracia consensual" cubana, incorporou-se
à chamada "Alternativa Bolivariana para as Américas" (Alba), imaginada por
Chávez e Castro em dezembro de 2004.
Convém lembrar ainda que o ato de nacionalização, que redundará em algum
grau de expropriação, maior ou menor,
ocorreu logo depois de o presidente boliviano regressar de Havana, onde assinou com os outros membros do trio um
acordo pomposamente chamado de
"Tratado de Comércio dos Povos".
Estes e outros fatos apontam para a já
referida fragmentação dos países da
América Latina, como não é difícil perceber. O Mercosul é hoje uma instituição em crise aguda, ou terminal para os
mais pessimistas, pouco ou nada restando de seus propósitos originais, a
ponto de Uruguai e Argentina estarem
se digladiando em torno da instalação
de uma fábrica de papel em território
uruguaio, junto à fronteira com a Argentina. Por acréscimo, cada vez mais
ganham vulto as notícias de que o governo de esquerda do presidente Tabaré
Vázquez se dispõe a firmar um tratado
bilateral de comércio com os EUA,
diante da paralisia do Mercosul.
Por sua vez, Chávez dispõe-se a abandonar a Comunidade Andina, dando
mais um passo em seus planos hegemônicos, com base na circunstância de que
Peru e Colômbia se inclinaram a assinar
acordos com os Estados Unidos. Afora
isso, o presidente venezuelano interfere
na política interna de outras nações, ao
arremeter com palavras grosseiras contra o presidente peruano, Alejandro Toledo, e o candidato aprista, Alan Garcia,
às eleições presidenciais daquele país,
enquanto declara, ao mesmo tempo,
seu apoio à eleição do ex-militar nacionalista Ollanta Humala e à reeleição do
presidente Lula.
Diante desse quadro, crescem as responsabilidades do Brasil no plano das
relações latino-americanas. Entretanto,
infelizmente, os precedentes não nos induzem ao otimismo, diante da soma de
incompreensões e fracassos da política
externa brasileira. A suposta "hegemonia natural" do Brasil na América do
Sul, cantada e decantada pelo atual governo em seus primeiros tempos, potencializou as rivalidades entre nosso
país e a Argentina, servindo apenas para
que o presidente Néstor Kirchner obtivesse um trunfo importante na afirmação interna de sua popularidade. A obsessão de alcançar um assento permanente no Conselho de Segurança da
ONU, hoje meio esquecida, reforçou,
em vários países, a percepção dos propósitos hegemônicos do Brasil, que hoje
parecem risíveis. Por sua vez, a inclinação por Castro, Chávez e Morales, a que
não são estranhas as tintas ideológicas,
resultou no que se está vendo -no embaraço, na surpresa, no desmentido de
que "amor com amor se paga".
As responsabilidades do Brasil não se
limitam aos problemas com a Bolívia,
por mais importantes que eles sejam. É
até possível que se chegue a um acordo
com aquele país, apesar das muitas
complicações, se um mínimo de realismo prevalecer no governo boliviano,
quando arrefecer o clima de euforia patriótica que tomou conta do país, com
inegáveis dividendos políticos. Mas é visível que a política e o estilo dos "três
mosqueteiros" concorrem permanentemente para estrangular o regime democrático, ou deteriorá-lo, por meio de
fatos insólitos e pela constante alimentação de um clima de bravatas e ameaças que geram, em grande medida, a
instabilidade do continente.
Não podemos entrar nessa onda. Pelo
seu peso regional, o Brasil tem um importante papel a cumprir, não no sentido de uma "hegemonia" imposta, e sim
no de adotar uma postura de afirmação
da democracia, de equilíbrio e firmeza
no trato das questões internacionais, assim como de propor e adotar medidas
conjuntas positivas que atendam as populações. Terá o atual governo autoridade, clareza e capacidade para tanto?
Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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