São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O fundo soberano e a Constituição

FÁBIO ULHOA COELHO

A criação do fundo soberano esbarra em obstáculos constitucionais. Afinal, é investimento de dinheiro público em empresa privada

AS RESERVAS internacionais devem ficar empregadas num investimento bom e confiável enquanto o país não precisa delas para proteger sua economia. Como qualquer outro patrimônio financeiro, não há sentido em manter os recursos das reservas "guardados debaixo do colchão". Tradicionalmente, o investimento escolhido são os títulos da dívida pública norte-americana, que têm sido uma alternativa segura, mas de retorno modestíssimo.
Alguns governos têm investido parte das reservas em empresas privadas. O retorno é, em geral, mais atraente, embora o risco seja maior.
Essa estratégia foi adotada pela primeira vez na Ásia, em 1974, por Cingapura. Os recursos das reservas internacionais direcionados à aplicação em empresas privadas têm sido chamados, com pompa, de fundos de riqueza soberana ("sovereign wealth funds") ou, simplesmente, fundos soberanos.
Após ter colado o grau de investimento, o Brasil começa a discutir a formação do seu próprio fundo soberano. Divulga-se que o objetivo do governo seria investir os recursos desse fundo em empresas brasileiras que operam onde há menos crédito bancário, como América Latina e África.
Sob o ponto de vista jurídico, a criação do fundo soberano esbarra em obstáculos constitucionais. Afinal, trata-se de investimento de dinheiro público em empresas privadas, tema que preocupa a Constituição. Nela, há regras estabelecidas com o objetivo de evitar favorecimentos e indevido uso político dos recursos públicos.
O governo não pode empregar o dinheiro público numa empresa privada sem autorização do Poder Legislativo, dada por lei específica.
Sempre que convergem, no capital de empresa privada, recursos públicos e particulares, ela é uma sociedade de economia mista. A Constituição condiciona a instituição desse tipo de sociedade à edição de lei específica.
O governo não pode livremente sair por aí escolhendo as empresas em que considera ser o caso de investir o dinheiro público. Essa decisão deve passar pelo crivo do Congresso. São, contudo, obviamente incompatíveis as dinâmicas das decisões de administração do fundo soberano e a exigência constitucional de lei específica para cada investimento a fazer com os recursos.
Para alguns, o BNDES seria a solução. Ele teria a condição jurídica para adotar a estratégia de investimento associada ao pretendido fundo soberano, pois seu objetivo institucional é mesmo o de financiar empresas brasileiras em desenvolvimento e eventualmente participar do capital delas.
Para se tornar o veículo do fundo soberano, no entanto, o banco de fomento deveria receber como capital social os recursos retirados das reservas internacionais brasileiras. Somente depois de o BNDES se tornar o titular desses recursos é que deixaria de ser exigível a lei específica para cada investimento. Se o banco for mero gestor do fundo, a exigência constitucional permanece, porque o dinheiro investido continua público.
Mas, nesse caso, o que estaria acontecendo, na verdade, seria só a destinação de maiores parcelas do Orçamento para o fomento da economia.
Chamar isso de fundo soberano atende apenas ao marketing político, como se a pomposa denominação pudesse servir como uma espécie de passaporte para o Brasil ingressar num clube seleto de países.
Seria, por outro lado, incrível que a comunidade internacional continuasse a considerar esses recursos alocados no capital social do banco de fomento como reservas, em vista da redução de liquidez.
Os fundos soberanos têm sido usados como medida de boa administração das reservas internacionais. A generalidade dos países que adotam essa estratégia de investimento escolhe empresas sólidas. Se os recursos do fundo brasileiro forem alocados em negócios ainda em fase de maturação, tendem a perder a função de reservas.
Como o fundo soberano deve ter forte liquidez, para que o país possa rapidamente utilizar suas reservas, se e quando precisar, é um tanto temerário investir em empresas não cotadas em Bolsa ou de grande risco. Em suma, sem mudança na Constituição, o Brasil não poderá constituir um verdadeiro fundo soberano. Sem ela, só será possível usar a charmosa expressão para designar mais investimentos públicos no fomento de empresas privadas.


FÁBIO ULHOA COELHO, advogado, doutor em direito, é professor titular de filosofia do direito, direito comercial e empresarial da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). É autor de "Curso de Direito Comercial", entre outras obras.

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