São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deveria ser cumprida a noventena na cobrança da CPMF?

SIM

Princípio da anterioridade

IVES GANDRA MARTINS

Tenho por manifestamente inconstitucional a interpretação que se pretende dar à futura emenda (poderá ser a de nº 37), segundo a qual, para a cobrança da CPMF por mais três anos, afastar-se-á o princípio da anterioridade (cláusula pétrea) aplicável às contribuições sociais (artigo 195, par. 6º da Constituição Federal), que exige uma antecedência de 90 dias entre a entrada em vigor da lei instituidora do tributo e sua cobrança.
Já, no passado, quando da criação do IPMF, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o princípio da anterioridade (artigo 150, inciso III, letra "a" da CF) não poderia ser afastado nem mesmo por emenda constitucional, por se tratar de cláusula pétrea (artigo 60, par. 4º, inciso IV). Com esse fundamento, a parte da emenda que previa a vigência e a eficácia imediatas para cobrança do imposto já em setembro de 1993 foi declarada inconstitucional, por ferir norma imodificável da lei suprema, veiculadora de garantia dos contribuintes, consistente em pô-los a salvo do elemento surpresa, de forma a permitir o planejamento de suas atividades com o conhecimento prévio dos tributos sobre elas incidentes, no caso de imposto, impedindo a sua cobrança no mesmo exercício em que instituído.
Trata-se de vetusto princípio, que data de 1215 -quando os barões exigiram de João Sem Terra que, ao elaborar seu orçamento anual, desse-lhe a conhecer previamente de quanto necessitaria, a título de tributo, para manter as despesas da Coroa- e vem sendo repetido, na maior parte dos países, inclusive no Brasil, que consagrou, para as contribuições sociais, uma antecedência de 90 dias e, para os impostos, condicionou a sua exigência, em determinado exercício, à aprovação da lei instituidora no exercício anterior.
Sobre essa matéria, já decidiu, portanto, o Supremo Tribunal Federal, ainda quando a roupagem da atual contribuição era a de imposto (IPMF), instituído provisoriamente para cobrir os furos de caixa da burocracia oficial.
Cláusula pétrea é cláusula imodificável, e imodificável "ad perpetuam", no regime jurídico constitucional adotado. Não é cláusula que pode ser afastada ao sabor dos interesses governamentais e, principalmente, no caso da futura emenda constitucional, em virtude de desentendimentos entre os partidos da base do governo, por inabilidade, principalmente, dos dirigentes do partido da Presidência.
Aquilo que era pacífico -aprovação em determinado tempo- deixou de o ser, em face dos "humores" partidários, e a solução encontrada foi sacrificar uma garantia fundamental do contribuinte, violentando-se a Constituição. Vale dizer: para que o prazo de entrada em vigor da exigência seja aquele que se pretendia antes da ruptura da base governamental, afasta-se a cláusula pétrea, sob a alegação de que se trata de prorrogação da emenda anterior e da gravidade da crise que advirá pela falta de receita decorrente da "não-prorrogação".
Ora, se a Carta Constitucional só é para ser respeitada quando não há crise que justifique seu descumprimento, então, à evidência, é preferível fulminar o Estado de Direito democrático, admitindo-se que os princípios e garantias individuais do cidadão ou do contribuinte sirvam apenas para as discussões acadêmicas.
Do ponto de vista estritamente jurídico, não vejo como possa ser negada a força absoluta do artigo 195, par 6º, da Constituição Federal, que condiciona a exigência das contribuições sociais nele previstas à publicação da lei instituidora com antecedência de 90 dias. A desconsideração dessa norma é vedada pelo par. 4º, inciso IV, do artigo 60 da CF, que impede até mesmo a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais.
Que a futura emenda não trata de prorrogação é evidente. Emendas constitucionais, que não firam cláusula pétrea, podem revogar ou instituir novas prorrogações de legislação vigente. Mas não se pode cogitar a prorrogação da emenda anterior, cuja eficácia estará esgotada. O esgotamento da eficácia de uma emenda significa que, se o tributo tiver que permanecer, deve ser objeto de nova instituição, lastreada em nova emenda, com observância do princípio da anterioridade (noventena).
Reconheço que haverá um problema econômico sério, porém o seu equacionamento deveria ter sido obtido pela via política, com bom senso e responsabilidade. Não à custa da retirada de garantias fundamentais do contribuinte, em manifesta violação à Constituição.
O princípio da anterioridade é, pois, uma cláusula pétrea que não pode ser afastada por emenda de constituinte derivado, cuja inconstitucionalidade é tão evidente que me faz lembrar um julgamento, no Supremo Tribunal Federal, em que o ministro Francisco Rezek, ao proferir seu voto sobre a presença de "fumus boni iuris", em ação em que se discutia a inconstitucionalidade manifesta de determinada lei, terminou por concluir que a fumaça do bom direito era tanta que o impedia de vislumbrar a figura dos ministros à sua frente.
Que a Constituição seja respeitada, por mais grave que pareça a crise econômica, para que o Brasil continue um Estado democrático de Direito.


Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército.



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