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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deveria ser cumprida a noventena na cobrança da CPMF?
SIM
Princípio da anterioridade
IVES GANDRA MARTINS
Tenho por manifestamente inconstitucional a interpretação que
se pretende dar à futura emenda (poderá ser a de nº 37), segundo a qual, para a
cobrança da CPMF por mais três anos,
afastar-se-á o princípio da anterioridade (cláusula pétrea) aplicável às contribuições sociais (artigo 195, par. 6º da
Constituição Federal), que exige uma
antecedência de 90 dias entre a entrada
em vigor da lei instituidora do tributo e
sua cobrança.
Já, no passado, quando da criação do
IPMF, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o princípio da anterioridade
(artigo 150, inciso III, letra "a" da CF)
não poderia ser afastado nem mesmo
por emenda constitucional, por se tratar
de cláusula pétrea (artigo 60, par. 4º, inciso IV). Com esse fundamento, a parte
da emenda que previa a vigência e a eficácia imediatas para cobrança do imposto já em setembro de 1993 foi declarada inconstitucional, por ferir norma
imodificável da lei suprema, veiculadora de garantia dos contribuintes, consistente em pô-los a salvo do elemento surpresa, de forma a permitir o planejamento de suas atividades com o conhecimento prévio dos tributos sobre elas
incidentes, no caso de imposto, impedindo a sua cobrança no mesmo exercício em que instituído.
Trata-se de vetusto princípio, que data de 1215 -quando os barões exigiram
de João Sem Terra que, ao elaborar seu
orçamento anual, desse-lhe a conhecer
previamente de quanto necessitaria, a
título de tributo, para manter as despesas da Coroa- e vem sendo repetido,
na maior parte dos países, inclusive no
Brasil, que consagrou, para as contribuições sociais, uma antecedência de 90
dias e, para os impostos, condicionou a
sua exigência, em determinado exercício, à aprovação da lei instituidora no
exercício anterior.
Sobre essa matéria, já decidiu, portanto, o Supremo Tribunal Federal, ainda
quando a roupagem da atual contribuição era a de imposto (IPMF), instituído
provisoriamente para cobrir os furos de
caixa da burocracia oficial.
Cláusula pétrea é cláusula imodificável, e imodificável "ad perpetuam", no
regime jurídico constitucional adotado.
Não é cláusula que pode ser afastada ao
sabor dos interesses governamentais e,
principalmente, no caso da futura
emenda constitucional, em virtude de
desentendimentos entre os partidos da
base do governo, por inabilidade, principalmente, dos dirigentes do partido
da Presidência.
Aquilo que era pacífico -aprovação
em determinado tempo- deixou de o
ser, em face dos "humores" partidários,
e a solução encontrada foi sacrificar
uma garantia fundamental do contribuinte, violentando-se a Constituição.
Vale dizer: para que o prazo de entrada
em vigor da exigência seja aquele que se
pretendia antes da ruptura da base governamental, afasta-se a cláusula pétrea,
sob a alegação de que se trata de prorrogação da emenda anterior e da gravidade da crise que advirá pela falta de receita decorrente da "não-prorrogação".
Ora, se a Carta Constitucional só é para ser respeitada quando não há crise
que justifique seu descumprimento, então, à evidência, é preferível fulminar o
Estado de Direito democrático, admitindo-se que os princípios e garantias
individuais do cidadão ou do contribuinte sirvam apenas para as discussões
acadêmicas.
Do ponto de vista estritamente jurídico, não vejo como possa ser negada a
força absoluta do artigo 195, par 6º, da
Constituição Federal, que condiciona a
exigência das contribuições sociais nele
previstas à publicação da lei instituidora
com antecedência de 90 dias. A desconsideração dessa norma é vedada pelo
par. 4º, inciso IV, do artigo 60 da CF,
que impede até mesmo a deliberação de
proposta de emenda tendente a abolir
direitos e garantias individuais.
Que a futura emenda não trata de
prorrogação é evidente. Emendas constitucionais, que não firam cláusula pétrea, podem revogar ou instituir novas
prorrogações de legislação vigente. Mas
não se pode cogitar a prorrogação da
emenda anterior, cuja eficácia estará esgotada. O esgotamento da eficácia de
uma emenda significa que, se o tributo
tiver que permanecer, deve ser objeto de
nova instituição, lastreada em nova
emenda, com observância do princípio
da anterioridade (noventena).
Reconheço que haverá um problema
econômico sério, porém o seu equacionamento deveria ter sido obtido pela via
política, com bom senso e responsabilidade. Não à custa da retirada de garantias fundamentais do contribuinte, em
manifesta violação à Constituição.
O princípio da anterioridade é, pois,
uma cláusula pétrea que não pode ser
afastada por emenda de constituinte derivado, cuja inconstitucionalidade é tão
evidente que me faz lembrar um julgamento, no Supremo Tribunal Federal,
em que o ministro Francisco Rezek, ao
proferir seu voto sobre a presença de
"fumus boni iuris", em ação em que se
discutia a inconstitucionalidade manifesta de determinada lei, terminou por
concluir que a fumaça do bom direito
era tanta que o impedia de vislumbrar a
figura dos ministros à sua frente.
Que a Constituição seja respeitada,
por mais grave que pareça a crise econômica, para que o Brasil continue um
Estado democrático de Direito.
Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades
Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do
Estado-Maior do Exército.
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