São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma ameaça maior que o dogma

MAURÍCIO TUFFANI


O alvo da queixa do alemão Martin Heidegger foi outro: a tradição acadêmica dogmática e louvadora do pensamento cartesiano


Os temas filosóficos são muitas vezes identificados pelo senso comum por seus aspectos extravagantes. Estes, longe de transmitir as ideias originais, na verdade ofuscam o que há de essencial nelas. Mas há também, entre os próprios pensadores, uma espécie de senso comum filosófico. Está no apelo exagerado aos "ismos" -o humanismo, o niilismo e outros- e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete.
Devido à vastidão da filosofia, nenhum pensador é imune a essa banalização. Não há, portanto, desrespeito ao apontar isso nos dois textos mais recentes do colunista Antonio Cicero na Ilustrada, "Irracionalismo" (15/ 5) e "Heidegger, Descartes e a razão" (29/5).
O segundo artigo dele é uma réplica a "O tabu em torno da razão" ("Tendências/Debates", 26/5), no qual contestei o primeiro por ele ter atribuído a Martin Heidegger um "feroz anticartesianismo" e também a "desqualificação" da tradição filosófica e da razão.
Peço desculpas por um erro em meu artigo anterior. Apontei como fonte o parágrafo 24, em vez do 6º, do livro "Ser e Tempo", de Heidegger. Poupo os leitores do revide às suposições feitas pelo colunista sobre mim por não ter ele notado que esse foi um erro de referência.
Meu foco não é defender o pensador alemão. Como já ressaltei e exemplifiquei, há críticas pertinentes a ele. Mas esse não é o caso dos argumentos do colunista, já previstos e contestados desde 1927 em "Ser e Tempo".
Heidegger questionou as noções básicas do pensamento de Descartes, tradicionalmente concebidas como absolutas, e concluiu que são filhas da escolástica medieval. Essa investigação da "certidão de nascimento" do cartesianismo não é imune a críticas.
Mas Antonio Cicero simplesmente chamou-a de "relativização", sem notar que, há 73 anos, "Ser e Tempo" já previra e contestara essa rotulação (parágrafo 6º). Para reforçar sua ideia do "ataque" a Descartes, o colunista alegou que, em "A Questão Fundamental da Filosofia", Heidegger se queixou da importância do pensador francês nas universidades, ao apontá-lo como o início de uma ampla decadência da filosofia. Mas o alvo da queixa do alemão foi outro: a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Além disso, o conceito de "verfallen" (decadência, em alemão) "não exprime qualquer avaliação negativa"", esclarece "Ser e Tempo" (parágrafo 38).
Trata-se do "empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade".
Esse ponto nos conduz ao que importa nesta discussão, que pode soar "bizantina" para o senso comum: o pior, ao se banalizar um pensamento, não é distorcer suas conclusões, mas ocultar suas interrogações.
Antonio Cicero encerrou seu artigo dizendo defender a razão e a liberdade de pensamento contra o dogma. Mas a banalização é capaz de mascarar até mesmo o dogma.
Ela está presente em cada um de nós e pode fazer da própria liberdade do pensamento um clichê vazio e inócuo.


MAURÍCIO TUFFANI é jornalista, editor do blog Laudas Críticas e assessor de comunicação e imprensa da Unesp.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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