São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O mundo vai tão mal assim?

BORIS FAUSTO

Uma convicção instalou-se na consciência da grande maioria das pessoas que acompanham, com maior ou menor interesse, os acontecimentos internacionais: a de que o mundo vai muito mal e, segundo alguns, está à beira da catástrofe.
Para expressar essa convicção, a ênfase recai em situações ou fatos diversos, variando de acordo com as opiniões políticas e as sensibilidades de cada um. Há quem acentue o poder dos Estados Unidos, país convertido de potência hegemônica em potência coercitiva, sob o comando fundamentalista de Bush; há quem aponte a emergência do fundamentalismo islâmico e, em conexão, os terríveis atentados de Nova York e Madri; há quem lembre a generalização do tráfico internacional de drogas, a miséria que grassa em muitas partes do mundo ou todas essas coisas em conjunto.
Esses dados são muito contristadores, mas devem nos levar, necessariamente, a um pessimismo ilimitado?
Penso que não e acredito que parte do catastrofismo deriva do contraste entre os dias de hoje e uma conjuntura que despertou grandes esperanças, seguidas de frustração.


Parte do catastrofismo deriva do contraste entre os dias de hoje e uma conjuntura que despertou grandes esperanças


Podemos tomar a queda do Muro de Berlim (1989) como o momento em que se abriram tais esperanças quanto ao futuro do mundo. A Guerra Fria terminara, um império totalitário ruíra e um grau de razoável consenso parecia esboçar-se entre as nações. De lá para cá, entretanto, tudo ou quase tudo deu errado. Os entendimentos de paz entre israelenses e palestinos fracassaram, originando a Intifada, a extensão do terrorismo árabe e a repressão insólita dos israelenses; Bush embarcou na aventura do Iraque, com as conseqüências conhecidas; o 11 de Setembro, que despertou a simpatia pelos Estados Unidos no mundo ocidental, deu lugar ao antiamericanismo, por força do comportamento desastroso do governo norte-americano.
Diante de uma conjuntura tão negativa, poderia parecer mesmo que o mundo nunca andou tão mal. Mas, se recorrermos a um espectro mais amplo da história contemporânea, o quadro é bem mais matizado. O mundo conheceu, no século 20, a emergência do nazi-fascismo e do comunismo soviético, que trouxeram em sua esteira os campos de concentração e o Gulag. Conheceu as perseguições raciais, resultando na liqüidação de milhões de pessoas, judeus em sua imensa maioria. Além disso, explodiram duas conflagrações mundiais, num intervalo de pouco mais de 20 anos, que provocaram também a morte de milhões de pessoas e a pulverização de cidades inteiras, sendo o caso de Hiroshima apenas um exemplo, embora particularmente terrível.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a ilusão do entendimento entre os vencedores se desvaneceu rapidamente e as duas maiores potências entraram numa corrida atômica que quase resultou em uma catástrofe, como ocorreu no curso da crise gerada pela instalação dos mísseis soviéticos em Cuba.
Hoje, tomando os exemplos acima em termos comparativos, as perseguições raciais ou o universo concentracionário não têm, nem de longe, as proporções do passado, mesmo lembrando o horror das "limpezas étnicas" na antiga Iugoslávia ou campos de concentração como os de Guantánamo. Este último, aliás, suscitou denúncias provenientes de várias fontes, o que tem contribuído para que a Suprema Corte americana comece a reconhecer os direitos dos prisioneiros.
Por sua vez, a última grande conflagração terminou há quase 60 anos e nada indica a probabilidade de algo semelhante em futuro previsível. Exemplificando, dois países inimigos desde as últimas décadas do século 19 -a França e a Alemanha- são hoje nações aliadas na construção difícil, mas extremamente auspiciosa, da União Européia.
Não se diga que estou comparando, no mais das vezes, horrores maiores e menores. Sem negá-los, há avanços muito positivos do esforço civilizatório, alguns deles bastante novos. Lembro, no plano político, a multiplicação de regimes democráticos, sendo que estes se contavam nos dedos há cem anos ou menos. Os esforços da implantação de uma ordem internacional que reconheça a universalidade dos direitos humanos e crie instituições com competência para processar e julgar os acusados de violação desses direitos. A emergência da sociedade civil, pressionando no sentido de que as populações possam ter mais voz num mundo globalizado, na preservação do meio ambiente, pelo reconhecimento dos direitos de minorias que, em alguns países, são maioria, como é o caso das populações indígenas.
Na esfera do comportamento, lembro a afirmação do feminismo, a maior participação dos homens das novas gerações na criação dos filhos, o reconhecimento do direito à diversidade nas preferências sexuais, a legalização do direito ao aborto, em vários países, não obstante o obscurantismo, maior ou menor, das diferentes igrejas.
Seria preciso ser um discípulo do dr. Pangloss -o personagem de Voltaire- ou, se quiserem, ter o espírito de Poliana para dizer que o mundo vai bem. Mas acreditar que ele nunca esteve tão mal reflete apenas a insegurança dos dias de hoje, e não a realidade.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional, da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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