São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Propaganda enganosa

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Você já imaginou como seria bom se o governo, utilizando verbas públicas, pagasse a propaganda da sua fábrica, do seu restaurante ou do seu hospital usando todos os dias vários minutos da Rede Globo e outras redes de televisão, duas páginas da "Veja" e da "Isto É", amplos espaços nos jornais e rádios de maior circulação do país? Mesmo que seu negócio vendesse ilusão, você ficaria milionário.
Isso não é brincadeira de mau gosto. É exatamente o que a Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, um órgão público, está fazendo em favor das operadoras de planos de saúde, estimulando os 18 milhões de brasileiros que adquiriram seus planos antes de 1999 a assinarem um novo contrato, pagarem, desde já, de 15% a 25% a mais na sua mensalidade e caírem todos na armadilha das faixas etárias que, até os 59 anos de idade, aumentarão em seis vezes essa mensalidade.
Um cidadão jovem que paga R$ 300 por mês pelo seu plano, ao atingir 59 anos, estará pagando R$ 1.800, além dos aumentos da migração. Com um teto de vencimentos da aposentadoria de R$ 2.400, ele não terá outra saída: será obrigado a abandonar o plano no momento em que mais precisar dele.


A ANS está demonstrando excessiva solidariedade às operadoras dos planos de saúde e pouca preocupação com a saúde dos usuários


A propaganda da ANS omite esses fatos, quando teria obrigação de os esclarecer -e mais, deveria dizer também que quem assinou planos de saúde antes de 1999, se não está coberto pelos benefícios da lei 9.656, tem um contrato juridicamente perfeito, amparado pelo Estatuto do Consumidor e por toda a jurisprudência formada por centenas de processos de pessoas que reclamaram da limitação do tempo de internação ou exclusão de determinadas doenças. E os planos, mesmo os de antes de 1999, diferentemente do que diz a propaganda, estão legalmente protegidos. Procon, Idec e ProTeste estão aí para ajudar os usuários.
A ANS, fazendo propaganda sem dizer a verdade por inteiro, está agindo de forma desonesta, demonstrando excessiva solidariedade às operadoras dos planos de saúde e pouca preocupação com a saúde dos usuários, que, ao migrarem, além de pagar exageradamente mais, vão ter novas carências injustas, porque já foram cumpridas no passado, para fazer jus aos novos procedimentos. Agiu corretamente o juiz Roberto Wanderley Nogueira, de Recife, ao impedir, com uma liminar, essa propaganda em todo território nacional, a partir de 1º/ 7/04, por considerá-la enganosa.
Tudo isso ocorre com o conhecimento da Presidência da República, pois a medida provisória 148, de dezembro de 2003, atribuiu à ANS liberdade total para regulamentar a migração, e essa agência o fez apenas sete dias depois, nas vésperas do Natal de 2003, através de duas resoluções normativas -as de números 63 e 64-, que contêm todas essas perversidades, sem discussão com nenhuma das inúmeras entidades interessadas e antes da votação da MP no Congresso.
Fui relator dessa MP e propus medida de conversão -fartamente discutida com todos os estamentos envolvidos- que fazia a correção desses exageros, inclusive daqueles que atingem hospitais prestadores e médicos que não têm aumento há oito anos -sendo que, nos últimos seis anos, os planos, segundo o Ipea, aumentaram as prestações em 332% acima da inflação. Todos os discursos no plenário foram favoráveis, o governo encaminhou contrariamente e a medida não foi aprovada.
O governo não tem constrangimento: veicula propaganda enganosa, orienta votação desastrosa, continua solidário com as operadoras e com os bancos e não melhora o SUS, o que daria cobertura aos egressos inadimplentes dos planos. Cumpro o dever, sem o espaço propagandístico da ANS, de prevenir o usuário incauto: não migre antes de conferir seu novo contrato por inteiro, principalmente os aumentos que decorrerão das faixas etárias, e, se ele for pior que o que você tem hoje, não assine. Você não é obrigado a fazê-lo.
Triste país este, onde a ANS gasta enorme dinheiro em propaganda para defender operadoras de planos, sem considerar os recursos enormes que não são ressarcidos pelas operadoras ao SUS, por inoperância da própria ANS, que não cumpre sequer a lei 9.656.
Na realidade, por incrível que pareça, o pobre e insuficiente SUS está financiando as operadoras de planos de saúde em detrimento dos seus usuários, que são os mais necessitados, enquanto as operadoras protegem seus lucros, atendem os beneficiários com deficiência e exploram médicos e hospitais. Tudo isso sem nenhuma interferência da ANS.

José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (1986-1992), secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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