São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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A MÃO SINISTRA

Em um clássico do cinema, dirigido pelo cineasta norte-americano Stanley Kubrick, o ator Peter Sellers interpreta o memorável doutor Strangelove, numa corrosiva sátira ao militarismo anticomunista norte-americano dos tempos da Guerra Fria. Ele vive às voltas com seu braço mecânico, que insiste em se erguer inadvertidamente em saudação fascista, acentuando as tendências ideológicas da personagem. Também partidos de esquerda, mesmo convertidos às regras do convívio democrático, parecem às vezes ser vítimas do tique revelador de Strangelove: quando não se espera, eis que erguem o braço e deixam entrever os traços de suas surradas concepções autoritárias e centralizadoras.
Nesta semana, dois fatos restabeleceram as ligações entre o governo petista e alguns conhecidos cacoetes stalinistas: o texto de uma lei para criar a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e a proposta, encaminhada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso, com vista a instituir o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ).
Nos dois projetos, temos a mão sinistra do estatismo e do dirigismo procurando regulamentar, controlar e domesticar a livre expressão do pensamento. No caso do CFJ, a justificativa apresentada pelo ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, fala por si: "Não há nenhuma instituição com competência legal para normatizar, fiscalizar e punir condutas inadequadas dos jornalistas". O ministro, talvez inspirado no exemplo do líder cubano Fidel Castro, que ocupa lugar proeminente na galeria dos heróis petistas, não deixa dúvida sobre o que se pretende: independentemente de já existir legislação específica, cria-se uma instância de "fiscalização" ligada ao governo federal, que terá enorme potencial de ser instrumentalizada para coagir profissionais da imprensa.
A idéia, que foi lamentavelmente sugerida pela própria Federação Nacional dos Jornalistas, ganha contornos ainda mais alarmantes ao se recordar que o governo recentemente pretendeu expulsar do país um correspondente do jornal "The New York Times", além de solicitar, por intermédio do ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação, que a imprensa fosse menos "negativista". Não satisfeito, o mesmo Gushiken afirmou anteontem que o CFJ irá "proteger a sociedade".
No mesmo sentido vai o projeto da Ancinav, segundo o qual o Estado arvora-se em ente todo-poderoso no planejamento, regulamentação, fiscalização e administração das atividades cinematográficas e audiovisuais, tratando de submetê-las a valores éticos e a finalidades "relevantes" que serão, afinal, definidas por quem detém o poder político.
É fato que a legislação sobre cinema merece aperfeiçoamentos, notadamente no que tange às regras do incentivo fiscal, por demais concessivas e consideradas por muitos ineficazes para estimular a formação de investidores privados. Bem diferente é trilhar o caminho do intervencionismo e procurar colocar sob o jugo do poder central a própria "responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação".
Felizmente, as veementes reações da sociedade parecem ter, nesse caso, surtido algum efeito. O Ministério da Cultura viu-se compelido a ampliar o debate e rever o texto. Quanto ao infame Conselho Federal de Jornalismo, é de esperar que seja rechaçado pelo Legislativo.


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