São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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GENOCÍDIO EM MARCHA

"Eu quero salvar cada uma das crianças. Mas nem nós nem a comunidade internacional temos os recursos ou o mandato para isso. Então, temos que fazer distinções. Temos que formular duras questões sobre onde e quando podemos intervir." Antes dessas palavras, proferidas há uma década por Anthony Lake, o conselheiro de Segurança Nacional de Bill Clinton, dezenas de milhares de civis já tinham sido assassinados em Ruanda, na África, ao longo de um mês de massacres. Nos 70 dias seguintes, governos e Nações Unidas continuaram inertes, ou melhor, imersos num debate arcano sobre o significado preciso do termo "genocídio". Nesse intervalo, a matança ininterrupta ceifou as vidas de 800 mil pessoas.
Como num pesadelo, o roteiro de Ruanda começa a se repetir no Sudão. Na região ocidental de Darfur, a milícia janjaweed, comandada por líderes de tribos que se identificam como árabes, aterroriza as tribos que se descrevem como negro-africanas. O número de refugiados já ultrapassa 1 milhão, os mortos já somam mais de 30 mil e 2 milhões necessitam urgentemente de remédios e alimentos. Isso é "genocídio"?
O governo sudanês, indignado, afirma que não. Há múltiplos indícios de que a milícia janjaweed seja financiada e armada pelo governo. O conflito participa marginalmente do contexto maior da interminável guerra civil sudanesa que opõe o regime islâmico de Cartum aos rebeldes não-islâmicos do sul. Diante da perspectiva de um acordo de paz, que asseguraria autodeterminação para o sul, líderes negro-africanos de Darfur iniciaram uma revolta para conquistar autonomia regional.
Na ONU, como aconteceu há dez anos, as potências negam-se a pronunciar claramente a palavra "genocídio". Uma convenção da Nações Unidas sobre o tema, de 1948, confere o direito à intervenção para "prevenir e punir" o genocídio. Mas, sem essa caracterização, uma intervenção internacional só tem legalidade nos casos de autodefesa ou, sob autorização do Conselho de Segurança, para evitar ou enfrentar uma agressão militar. Em outras palavras, fora do contexto do genocídio, os Estados têm mãos livres para massacrar suas próprias populações ao abrigo do princípio da soberania nacional.
Até o momento, as potências mundiais negam-se a falar em genocídio. Os Estados Unidos, atolados no Iraque e no Afeganistão, parecem pouco propensos a liderar uma intervenção num país majoritariamente muçulmano da África. Os europeus, como de costume, aguardam um sinal de Washington. A Rússia e a China jamais usam a palavra "genocídio", pois não querem vê-la de modo algum empregada, algum dia, para a Tchetchênia ou o Tibete.
Enquanto isso, como há dez anos, acumulam-se os sinais de que um genocídio está em marcha.



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