São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Miragens e neblina na ciência e tecnologia

RENATO DAGNINO


O comportamento dos empresários não se deve à falta de recursos de governo. Antes, é racional dadas as "condições de mercado"

O PROFESSOR Roberto Nicolsky, um dos autores do artigo "Inovação tecnológica: realidade e miragem" ("Tendências/Debates", 29/7), é um dos mais agudos analistas de política de ciência e tecnologia (PCT). É, também, um dos pesquisadores das ciências duras que mais tem criticado a orientação que ela assumiu na última década. O artigo trata de nosso desempenho tecnológico avaliado pelas patentes. Como se sabe, ele é sofrível quando comparado com o que temos tido em ciência -o que, ressalto eu, é conseqüência de um enorme gasto público realizado desde a década de 1950 para formar pesquisadores. De forma competente, o artigo mostra que aquilo que é tomado como diretriz da PCT atual -"transformar em patentes a ciência produzida nas nossas universidades"- é uma "miragem" que se "desmancha no ar". Há, entretanto, outras "miragens". A começar pelo fato de que essa diretriz é tão velha quanto a própria PCT. E sua reorientação neoliberal da última década, que tem custado muito dinheiro público concedido a empresas (inclusive multinacionais), não tem produzido o resultado alegado. A crítica que faz o artigo é correta. Mas, por compartilhar a obsessão com as patentes, com a inovação nas empresas e com uma corrida internacional para ver quais se tornarão mais lucrativas por meio da tecnologia, ele permanece imerso na neblina ideológica que cerca a PCT. Até porque a "miragem" apontada já está sendo desfeita. Claro que de forma artificial, irreal e ineficaz como qualquer ação guiada por obsessões. Os responsáveis pela PCT, tendo finalmente compreendido que o conhecimento só chega às empresas embutido em pessoas, estão praticamente pagando para que elas empreguem mestres e doutores para fazer pesquisa e desenvolvimento (P&D). Eles afirmam, contrariando o que declaram os empresários, que é disso que estes precisam para aumentar sua lucratividade. Contudo, o fato de que as empresas absorvem menos de 1% dos mestres e doutores que se formam por ano é um sintoma claro da disfuncionalidade da PCT. Mas há outros sintomas que indicam a ineficácia da política de ciência e tecnologia para elevar a propensão das empresas à realização de P&D. Eis alguns desses sintomas: apenas 100 empresas das 30 mil que inovam introduziram no mercado (nos últimos três anos) alguma inovação de processo realmente nova; a importância que tem a P&D na estratégia de inovação das empresas inovadoras é quatro vezes menor do que a aquisição de máquinas; das empresas inovadoras, só 7% mantêm relação com universidades e institutos de pesquisa e, dessas, 70% atribuem a essa relação baixa importância; enquanto o governo vem alocando recursos crescentes para a P&D nas empresas, o seu gasto vem diminuindo em termos relativos; entre as empresas que não inovam, 12% declaram como causa a escassez de fontes de financiamento e 70% apontam condições de mercado. Tudo isso reforça um quadro que há seis décadas se tenta reverter com políticas equivocadas. O comportamento dos empresários não se deve à falta de recursos e instrumentos governamentais. Tal comportamento é economicamente racional diante daquilo que eles percebem como "condições de mercado", mas que deve ser atribuído à nossa condição periférica. Os autores do artigo acima citado defendem mais favores para a empresa: o que chamam de "compartilhamento universal do risco tecnológico entre Estado e empresa". Mas, como mantêm a proposição -na teoria equivocada e na prática catastrófica- de que o objetivo da PCT deve ser fazer com que o conhecimento produzido com recurso público beneficie a empresa (e, como candidamente se diz, leve ao bem-estar da sociedade), eles correm sério risco: o de reforçar o mito de que a PCT é um planejamento neutro ("policy") desprovido de interesses e valores ("politics"), adensando a neblina que a envolve. Para fugir da cruz da comunidade de pesquisa, a PCT está caindo na caldeirinha dos empresários. Os que almejam um cenário melhor para todos devem lutar para colocá-la a serviço da sua construção. É improvável, ainda que se desfaçam as "miragens" apontadas, que as empresas utilizem adequadamente os recursos que o governo está disponibilizando e se aproveitem do nosso potencial científico-tecnológico. Mas, se isso vier a ocorrer, entraremos num debate muito mais relevante: será que subsidiar a empresa para torná-la mais lucrativa ajudará a resolver os desafios tecnológicos e científicos daquele cenário? Será que é na "competitividade empresarial" que devemos depositar nossa esperança de desenvolvimento?


RENATO DAGNINO, 59, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular de política científica e tecnológica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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