São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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A exatidão do erro

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS


É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exato no modo como formulou a sua provocação


O COMENTÁRIO no Ocidente ao discurso do papa (proferido há quase um mês, associando o profeta Maomé à violência) se alinhou pelas seguintes idéias: não foi um discurso do papa, mas do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reações no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre razão e fé e a crítica do moderno secularismo ocidental.
Por que nenhum dos argumentos é convincente? O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitia romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente.
Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano 2º e continuada pelo papa João Paulo 2º, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa.
Essa posição é há muito questionada pelo atual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar fé e razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, verdade perene que decorre da filiação do cristianismo à filosofia grega. Ao contrário, no islã, o serviço de Deus está além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, é inerente ao islã, o que o faz uma religião inferior.
Essa doutrina está bem documentada na sua condenação dos teólogos mais avançados no diálogo ecumênico, na sua recusa em designar o islã como uma religião de paz, na sua oposição à entrada da Turquia na União Européia, dada a incompatibilidade essencial entre islamismo e cristianismo, e na sua convicção de que o islã é incompatível com a democracia.
É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exato no modo como formulou a sua provocação. Aliás, se o seu discurso pretendesse ser uma lição de teologia, seria de péssima qualidade.
Por que não citou o contexto da conversa entre o imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro? Por que não citou opiniões atuais contrárias à que proferiu? Por que não disse que, em qualquer das religiões abraâmicas, há preceitos que podem justificar o recurso à violência, assim tendo sucedido em nome de todas elas?
Perante essas interrogações, é necessário analisar o discurso do papa pelos seus reais objetivos políticos. O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o islã e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta.
Tal como João Paulo 2º alinhara o Vaticano com os EUA na luta contra o comunismo, Bento 16 pretende o mesmo, agora na luta contra o islamismo. Para ele, ante o avanço do islã, a resposta tem de ser mais dura, e precisa do poder temporal para se concretizar. Tal como aconteceu com as Cruzadas ou a Inquisição. Trata-se, pois, de uma teologia de vencedores, uma teologia teoconservadora, paralela à política neoconservadora.
O segundo objetivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o cristianismo como a única religião moderna. Só no âmbito dela é possível conceber "atos irracionais" (a perseguição dos judeus, as guerras religiosas, a violenta evangelização dos índios) como desvios ou exceções, por mais recorrentes que sejam.
Por outro lado, visa fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. O papa questiona a distinção entre espaço público e privado e acha "irracional" a religião ter sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas. Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura.
O perigo dessa crítica do secularismo está na coincidência com a posição dos clérigos islâmicos extremistas, para quem, em vez de modernizar o islã, há que islamizar a modernidade. Os opostos se tocam, e não para dialogar, mas para se confrontarem.
A irracionalidade do choque reside nas concepções estreitas de racionalidade de que se parte. De um lado, uma racionalidade que transforma a fé em crença racional ocidental; de outro, uma racionalidade que transforma a razão na manifestação transparente da intensidade da fé islâmica.
A luta contra esses extremismos é mais urgente que nunca, pois sabemos que eles foram no passado incubadores de guerras e genocídios devastadores. Mas pode o Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente no mesmo passo em que reforça o seu?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS , 65, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


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