São Paulo, Segunda-feira, 08 de Novembro de 1999
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Neochacina

JOSIAS DE SOUZA


São Paulo - O maior crime do estudante que matou três e feriu cinco no cinema foi o de ter injetado no faz-de-conta da classe média uma dose de realidade.
Ele conspurcou o último templo sagrado da elite paulistana: o shopping center, espécie de reserva ambiental urbana. De resto, ao disparar a metralhadora contra seus semelhantes, o estudante bem-nascido criou a chacina chique, um tipo de tragédia que nos inclui.
Vem daí o nosso frêmito de horror. Não estávamos acostumados. Isso era coisa de filme, era coisa de maluco norte-americano, era coisa de Primeiro Mundo.
Nossas chacinas só ocorriam no ermo da periferia. Nossos mortos eram estatísticas que a rotina confinou no rodapé da página de jornal. Nossos cadáveres eram impalpáveis.
Vez por outra a imagem da última chacina nos pegava desprevenidos no "Jornal Nacional", entre uma novela e outra. Mas víamos naquele genocídio em conta-gotas um processo de auto-regulação da pobreza. Enxergávamos naqueles corpos sem rosto vítimas de um não declarado projeto de planejamento familiar feito na marra.
A chacina do shopping violou a regra do jogo. Os cadáveres tinham nome e sobrenome. Eram brancos e bonitos como nós. E foram despejados ali, no tapete do living. O sangue respingou em nossos sapatos.
O tubo de imagem da TV, refúgio sempre tão seguro, sugou-nos para o centro da cena, num absurdo processo de inclusão. Antes que pudéssemos zapear, viramos parte da cena. Estávamos todos naquele cinema. Queríamos ver Brad Pitt e acabamos sendo alvejados por um Freddy Krugger da Santa Casa. O gratuito atropelou os nossos planos. Súbito o filme éramos nós.
Passado o susto, o cinema do shopping trocou o sangrento "Clube da Luta" pela comédia "American Pie". E nós, habitantes da Casa Grande, voltamos a sorrir. Exibiremos os dentes até que outro doido saia atirando. Ou até que alguém da Senzala nos aponte o revólver no semáforo.


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