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Neochacina
JOSIAS DE SOUZA
São Paulo - O maior crime do estudante que matou três e feriu cinco no
cinema foi o de ter injetado no faz-de-conta da classe média uma dose de
realidade.
Ele conspurcou o último templo sagrado da elite paulistana: o shopping
center, espécie de reserva ambiental
urbana. De resto, ao disparar a metralhadora contra seus semelhantes, o estudante bem-nascido criou a chacina
chique, um tipo de tragédia que nos
inclui.
Vem daí o nosso frêmito de horror.
Não estávamos acostumados. Isso era
coisa de filme, era coisa de maluco
norte-americano, era coisa de Primeiro Mundo.
Nossas chacinas só ocorriam no ermo da periferia. Nossos mortos eram
estatísticas que a rotina confinou no
rodapé da página de jornal. Nossos cadáveres eram impalpáveis.
Vez por outra a imagem da última
chacina nos pegava desprevenidos no
"Jornal Nacional", entre uma novela e
outra. Mas víamos naquele genocídio
em conta-gotas um processo de auto-regulação da pobreza. Enxergávamos
naqueles corpos sem rosto vítimas de
um não declarado projeto de planejamento familiar feito na marra.
A chacina do shopping violou a regra do jogo. Os cadáveres tinham nome e sobrenome. Eram brancos e bonitos como nós. E foram despejados
ali, no tapete do living. O sangue respingou em nossos sapatos.
O tubo de imagem da TV, refúgio
sempre tão seguro, sugou-nos para o
centro da cena, num absurdo processo
de inclusão. Antes que pudéssemos zapear, viramos parte da cena. Estávamos todos naquele cinema. Queríamos ver Brad Pitt e acabamos sendo
alvejados por um Freddy Krugger da
Santa Casa. O gratuito atropelou os
nossos planos. Súbito o filme éramos
nós.
Passado o susto, o cinema do shopping trocou o sangrento "Clube da Luta" pela comédia "American Pie". E
nós, habitantes da Casa Grande, voltamos a sorrir. Exibiremos os dentes
até que outro doido saia atirando. Ou
até que alguém da Senzala nos aponte
o revólver no semáforo.
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