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O passaporte
BORIS FAUSTO
Em meados dos anos 70, estava em
Londres com minha família. Fomos
visitar, certa noite, uma pessoa de nossas relações, que vivia exilado ou semi-exilado na Inglaterra. A conversa
correu solta e se estendeu até altas horas da noite. Havia muito em comum
entre nós: histórias de presos e perseguidos, liberdades e esquisitices britânicas, possibilidades ainda remotas de
uma abertura no Brasil.
No dia seguinte, ao me levantar no
hotel, uma parte da conversa me veio
nítida à memória, deixando tudo o
mais para trás. PAP -vou chamá-lo
assim- insistira em que tivéssemos
muito cuidado com nossos passaportes. Um passaporte brasileiro, afirmou, estava valendo em torno de US$
5.000, e havia muita gente disposta a
consegui-lo, seja pela perspectiva de
ganho, seja pela motivação ideológica
de dar cobertura legal a figuras integrantes de presumíveis redes clandestinas.
Pelo sim ou pelo não, resolvi confirmar que meu passaporte estava onde
sempre o guardava, no bolso esquerdo de um pesado casaco -escudo
protetor contra as surpresas do outono londrino. Dei uns passos até uma
pequena mesa onde o deixara na noite
anterior, enfiei a mão no bolso e nada!
Talvez tenha me enganado, pensei.
Procurei em outros bolsos, em gavetas
do quarto de hotel, em lugares altamente improváveis, na vã esperança
de que o documento brotasse de algum canto por força do meu desejo.
Estava diante do irremediável: o passaporte sumira.
O que teria acontecido? Lembrei-me
de ter tirado o casaco no apartamento
aquecido de PAP, que fora guardá-lo,
gentilmente, em outro aposento. Então só poderia ser isto: movido por generosas opções ideológicas -o que
para mim não representava um consolo-, ele havia expropriado o documento. Talvez racionalizasse o ato,
imaginando que, afinal de contas,
com um pouco de amolação eu me arranjaria. Puro engano. Ir a um consulado brasileiro, naqueles anos, e dizer
que tinha perdido o passaporte era me
converter, automaticamente, em perigoso suspeito. Contar a história do
que ocorrera seria acusar PAP, hipótese excluída, apesar do meu desapontamento.
Estava em um beco sem saída, quando minha mulher chegou da rua, com
a bolsa no ombro e alguns pacotes nas
mãos. Antes de que ela se acomodasse, soltei um doloroso desabafo: "Levaram meu passaporte!". A resposta
veio em um tom ao mesmo tempo
tranquilizador e irônico: "Claro que
levaram, até sei quem levou: fui eu". E
me mostrou a capa verde do passaporte, depositado confortavelmente
no fundo da bolsa.
A causalidade, pois, era outra. O passaporte caíra ao chão, escorregando
do bolso do casaco mal ajeitado sobre
a pequena mesa. Ao sair pela manhã,
ao se lembrar da enfática advertência
de PAP, minha mulher resolvera não
arriscar, levando-o dentro de sua
inexpugnável fortaleza.
Por que conto agora essa história?
Por duas razões diversas. Para reproduzir um fragmento do clima em que
estávamos envolvidos durante o regime militar e para desculpar-me perante PAP, mais de 20 anos decorridos, pelos maus pensamentos.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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