São Paulo, Segunda-feira, 08 de Novembro de 1999
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O passaporte

BORIS FAUSTO

Em meados dos anos 70, estava em Londres com minha família. Fomos visitar, certa noite, uma pessoa de nossas relações, que vivia exilado ou semi-exilado na Inglaterra. A conversa correu solta e se estendeu até altas horas da noite. Havia muito em comum entre nós: histórias de presos e perseguidos, liberdades e esquisitices britânicas, possibilidades ainda remotas de uma abertura no Brasil.
No dia seguinte, ao me levantar no hotel, uma parte da conversa me veio nítida à memória, deixando tudo o mais para trás. PAP -vou chamá-lo assim- insistira em que tivéssemos muito cuidado com nossos passaportes. Um passaporte brasileiro, afirmou, estava valendo em torno de US$ 5.000, e havia muita gente disposta a consegui-lo, seja pela perspectiva de ganho, seja pela motivação ideológica de dar cobertura legal a figuras integrantes de presumíveis redes clandestinas.
Pelo sim ou pelo não, resolvi confirmar que meu passaporte estava onde sempre o guardava, no bolso esquerdo de um pesado casaco -escudo protetor contra as surpresas do outono londrino. Dei uns passos até uma pequena mesa onde o deixara na noite anterior, enfiei a mão no bolso e nada! Talvez tenha me enganado, pensei. Procurei em outros bolsos, em gavetas do quarto de hotel, em lugares altamente improváveis, na vã esperança de que o documento brotasse de algum canto por força do meu desejo. Estava diante do irremediável: o passaporte sumira.
O que teria acontecido? Lembrei-me de ter tirado o casaco no apartamento aquecido de PAP, que fora guardá-lo, gentilmente, em outro aposento. Então só poderia ser isto: movido por generosas opções ideológicas -o que para mim não representava um consolo-, ele havia expropriado o documento. Talvez racionalizasse o ato, imaginando que, afinal de contas, com um pouco de amolação eu me arranjaria. Puro engano. Ir a um consulado brasileiro, naqueles anos, e dizer que tinha perdido o passaporte era me converter, automaticamente, em perigoso suspeito. Contar a história do que ocorrera seria acusar PAP, hipótese excluída, apesar do meu desapontamento.
Estava em um beco sem saída, quando minha mulher chegou da rua, com a bolsa no ombro e alguns pacotes nas mãos. Antes de que ela se acomodasse, soltei um doloroso desabafo: "Levaram meu passaporte!". A resposta veio em um tom ao mesmo tempo tranquilizador e irônico: "Claro que levaram, até sei quem levou: fui eu". E me mostrou a capa verde do passaporte, depositado confortavelmente no fundo da bolsa.
A causalidade, pois, era outra. O passaporte caíra ao chão, escorregando do bolso do casaco mal ajeitado sobre a pequena mesa. Ao sair pela manhã, ao se lembrar da enfática advertência de PAP, minha mulher resolvera não arriscar, levando-o dentro de sua inexpugnável fortaleza.
Por que conto agora essa história? Por duas razões diversas. Para reproduzir um fragmento do clima em que estávamos envolvidos durante o regime militar e para desculpar-me perante PAP, mais de 20 anos decorridos, pelos maus pensamentos.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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