São Paulo, Segunda-feira, 08 de Novembro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES

O que reformar no Judiciário?


CARLOS VELLOSO

Vamos perder novamente a oportunidade de fazer a reforma de que o Judiciário necessita? O que é necessário compreender é que a sociedade brasileira deseja uma Justiça ágil, eficaz, barata, próxima do povo. À sociedade não interessa que, num determinado Estado-membro, a reforma se faça para unificar tribunais que estão funcionando bem, criando-se corte gigante, num tempo em que se fala em descentralização. Sustentamos que é preciso acabar com o fetichismo da jurisprudência uniforme. O dissídio jurisprudencial, então, não deveria ser pressuposto do recurso especial. O Superior Tribunal de Justiça conheceria do recurso especial por ofensa à lei, com arguição de relevância. Julgaria esse tribunal os grandes temas de direito federal, realizando, com a arguição de relevância, a integridade e a autoridade do direito federal no território nacional.
O mesmo pode ser dito relativamente à jurisdição trabalhista. Por que a jurisprudência trabalhista do ABC paulista deve ser igual à jurisprudência do Estado do Piauí? Ora, se são diferentes os dados culturais, econômicos, sociológicos, a jurisprudência também há de ser diferente. A revista trabalhista, portanto, teria como pressuposto, apenas, a ofensa à lei ou à Constituição. Também com a arguição de relevância, o TST julgaria os grandes temas de direito do trabalho.

Hoje, recorre-se de tudo; recursos protelatórios são interpostos, pois não custa nada recorrer
Está-se deixando de lado a súmula vinculante. Os tribunais continuarão com a massa inútil de recursos repetidos. O Supremo recebeu, no primeiro semestre deste ano, mais de 40 mil processos. Cerca de 80% são de recursos repetidos. É dizer, o efeito vinculante acabaria com cerca de 32 mil recursos inúteis. Está-se eliminando a ação declaratória de constitucionalidade, quando a tendência, em direito constitucional comparado, é o controle prévio, pela corte constitucional -Portugal e Espanha, por exemplo-, e a ação declaratória de constitucionalidade põe-se, de certa forma, nessa linha.
O Tribunal Superior Eleitoral funciona de forma correta. É um dos tribunais mais eficientes. O parecer, entretanto, está tirando de lá os ministros do Supremo. Alterar a composição do TSE vai tornar mais ágil a Justiça?
O parecer da relatora, na Câmara dos Deputados, é pela criação do Conselho Nacional da Magistratura, com o que estamos de acordo. Não concordamos, entretanto, com a composição proposta. Mantém o Conselho da Justiça Federal, junto do STJ, e cria um novo conselho junto do TST. Convenhamos que teremos conselhos demais. Bastaria o Conselho Nacional da Magistratura, integrado por ministros do STF, dos tribunais superiores, STJ, TSE, TST e STM, por desembargadores, representantes dos Regionais Federais e do Trabalho, juízes de primeiro grau e advogados, oficiando, perante ele, o procurador-geral da República, como fiscal da lei e da Constituição.
Querem que os juízes fiquem de plantão 24 horas. Para quê? Precisávamos pensar na criação dos juizados de instrução. Cada delegacia de polícia seria transformada em vara criminal, dirigida por um juiz, e essa vara poderia funcionar 24 horas seguidas. O Ministério Público ganharia poderes de investigação e a polícia ficaria sob as ordens do juiz de instrução, tal como ocorre, por exemplo, na França. Com isso, acabaríamos com a dualidade de instrução, a do inquérito policial e a instrução judicial criminal.
O recurso constitucional ou incidente de inconstitucionalidade seria importante na eliminação da lentidão da Justiça. Uma só decisão do Supremo Tribunal poria fim a milhares de ações. A possibilidade de o Supremo Tribunal conferir à sua decisão efeito "ex tunc" ou "ex nunc", como ocorre no Tribunal Constitucional de Portugal, é necessária. Pensemos seriamente numa reforma processual: as leis processuais precisam ser simplificadas, o sistema de recursos racionalizado. Hoje, recorre-se de tudo; recursos protelatórios são interpostos, pois não custa nada recorrer. Se se estabelecesse ônus na sucumbência recursal -quem perde o recurso paga os honorários do advogado do vencedor-, já seria um bom começo. Valorizemos o juiz de primeiro grau, que vive os fatos da causa. Certas demandas poderiam ter solução definitiva, em termos de matéria de fato, no primeiro grau. O recurso, daí para a frente, seria puramente jurídico.
E, finalmente, não vemos sentido na "quarentena" proposta para ingresso em tribunais. A dose foi alta demais. Se já tivéssemos essa "quarentena", não teríamos tido no Supremo juízes do porte, dentre outros, de Gonçalves de Oliveira, de Prado Kelly, de Evandro Lins, de Luís Gallotti, de Oswaldo Trigueiro, de Orozimbo Nonato, de Aliomar Baleeiro, de Xavier de Albuquerque, de Victor Nunes, de Hahnemann Guimarães, de Paulo Brossard, de Rafael Mayer, de Oscar Corrêa, de Moreira Alves, de Hermes Lima, de Sepúlveda Pertence, de Francisco Rezek, de Maurício Corrêa e de Nelson Jobim, juízes que ilustraram e ilustram o tribunal. No que toca à "quarentena" do magistrado, a dose também foi excessiva. É suficiente que fique estabelecido que aos juízes é vedado exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos dois anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.
Ponho em mesa essas idéias. Por que não as debater? O importante é que não percamos, mais uma vez, a oportunidade de realizar a reforma de que o Judiciário necessita e que a sociedade merece.


Carlos Velloso, 63, é presidente do Supremo Tribunal Federal. Foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral. É professor titular aposentado da UnB (Universidade de Brasília) e autor do ensaio "Do Poder Judiciário: como torná-lo mais ágil e dinâmico. Efeito vinculante e outros temas".




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