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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Até quando, companheiro?

FÁBIO KONDER COMPARATO

Escrevo-lhe de público e não em particular, como convém entre amigos, por uma simples razão. Você é, agora, na qualidade de presidente da República, o principal empregado do povo. Não se espante: quem afirmou isto não foi Karl Marx, mas um outro judeu que viveu na Palestina há 2.000 anos. Com uma agravante: segundo o relato evangélico (Mateus, 20, 24-28 e Lucas, 22, 24-27), os governantes devem ser considerados como servos ou escravos ("douloi", no texto grego) do povo, ou seja, menos do que trabalhadores assalariados. É preciso, portanto, que o seu patrão atual (menos exigente, mas muito mais digno que os seus antigos patrões) tome conhecimento do que lhe vou dizer.
Limito-me à economia. Alguém, de boa ou de má-fé, pouco importa, passou-lhe a idéia de que seria possível reduzir a miséria do nosso povo com a simples aplicação de políticas sociais, sem alterar em nada a política econômica anterior. Não sei se você tem tempo de ler jornais, ou se se contenta agora em correr os olhos sobre os relatórios de seus assessores. O fato é que a pobreza e, por conseguinte, também a miséria aumentaram neste país sob o seu governo. Segundo o IBGE, o rendimento médio da classe trabalhadora caiu 11,6% de dezembro de 2002 a outubro deste ano. No mesmo período, e sempre segundo os dados oficiais do IBGE, o desemprego aumentou de 10,5% para quase 13%.
A razão desse resultado funesto era previsível, e você deve se lembrar de que ela lhe foi longamente explicada antes da eleição. O nosso país está sendo inexoravelmente sufocado pela dívida pública, cujo principal já ultrapassa metade do PIB, sendo que o pagamento efetivo dos juros corresponde a 10% de toda a riqueza anualmente produzida.
Por falar em juros, no corrente ano as despesas com o serviço da dívida pública mais do que dobraram em relação a 2002, tendo superado em 22,5% todos os gastos da Previdência Social. A alternativa, portanto, no início do seu governo, era muito clara: reduzir as despesas financeiras ou fazer economias à custa do direito fundamental à Previdência de todos os brasileiros. Desculpe lembrar-lhe de que, além de optar por esta última solução, você ainda aumentou em muito as despesas com juros.
Mas agora eu lhe pergunto: com toda essa asfixia financeira, como pretende o seu governo conseguir recursos públicos para os investimentos em infra-estrutura (energia, transportes e comunicações), em ciência e tecnologia, em educação e saúde, ou em reforma agrária, sem os quais não há crescimento econômico e muito menos redução da desigualdade social? Certamente você não acredita que os capitalistas do mundo inteiro estão ansiosos para sacar os recursos aplicados na especulação financeira e investi-los aqui nesses setores, de baixíssima ou nula rentabilidade.
É claro, os seus ministros da área econômica dirão que é graças a esse sacrifício -imposto, aliás, não a eles pessoalmente, mas sim ao povo- que o país ostenta agora a condição de primeiro da classe no mundo das finanças internacionais e que sem isso teríamos perdido todo o crédito, e os capitais estrangeiros cessariam de vir para o nosso país. Diagnóstico falso, meu caro. A maior parte do dinheiro que entra no país é de cunho especulativo: os capitalistas vêm ao Brasil para se aproveitar dos altíssimos juros aqui praticados e sair de imediato ao primeiro sinal de perigo. Na verdade, nós não precisamos desses capitais; são eles, ao contrário, que precisam de nós.



Lembrarei apenas que você foi eleito para servir o povo brasileiro, e não para agradar aos grandes deste mundo
Aliás, é útil você saber que não são os países ricos que sustentam as nações pobres, mas bem o contrário. Entre 1997 e 2002, a transferência líquida de recursos financeiros do mundo subdesenvolvido para os países ricos foi de quase US$ 700 bilhões, ou seja, muito mais do que o PIB brasileiro. Segundo dados fornecidos pelo Banco Mundial, entre 1982 e 2000 a América Latina pagou, pelos empréstimos financeiros tomados, US$ 1,45 trilhão, o que equivale a mais de quatro vezes o montante total da dívida de origem.
Mas então, como mudar? -perguntará você. Lembra-se da renovação do acordo com o FMI, que a sua equipe econômica anunciou quando você viajava pela África? Eles lhe disseram que era só uma garantia (ou "backup", na linguagem que tanto prezam). Esqueceram de lhe contar o essencial: com a renovação desse acordo, a sua política econômica ficará congelada até o final do seu mandato. Se você quiser mudá-la, terá que romper com o FMI.
Meu caro, eu teria ainda muito mais a dizer, mas o espaço é exíguo. Lembrarei apenas que você foi eleito para servir (como servo, mesmo) o povo brasileiro, e não para agradar aos grandes deste mundo; e que todo o seu passado de vida digna, no sindicato e no partido, corre um sério risco de ser apagado da memória popular se o seu governo continuar no rumo atual. Apesar de tudo, eu e muitos outros continuamos a confiar naquele Lula generoso e justo que conhecemos e que permanecerá sempre o mesmo, se Deus quiser.
Esteja certo de que, no juízo final da história, o sorriso de gratidão da pobre velhinha que viu seus filhos e netos conseguirem um emprego digno graças à ação do seu governo pesará muito, mas muito mais, na balança da vida do que os elogios dos banqueiros do mundo todo à proclamada "seriedade" de sua política econômica.


Fábio Konder Comparato, 67, jurista, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.


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