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TENDÊNCIAS/DEBATES
Até quando, companheiro?
FÁBIO KONDER COMPARATO
Escrevo-lhe de público e não em
particular, como convém entre
amigos, por uma simples razão. Você é,
agora, na qualidade de presidente da
República, o principal empregado do
povo. Não se espante: quem afirmou isto não foi Karl Marx, mas um outro judeu que viveu na Palestina há 2.000
anos. Com uma agravante: segundo o
relato evangélico (Mateus, 20, 24-28 e
Lucas, 22, 24-27), os governantes devem
ser considerados como servos ou escravos ("douloi", no texto grego) do povo,
ou seja, menos do que trabalhadores assalariados. É preciso, portanto, que o
seu patrão atual (menos exigente, mas
muito mais digno que os seus antigos
patrões) tome conhecimento do que lhe
vou dizer.
Limito-me à economia. Alguém, de
boa ou de má-fé, pouco importa, passou-lhe a idéia de que seria possível reduzir a miséria do nosso povo com a
simples aplicação de políticas sociais,
sem alterar em nada a política econômica anterior. Não sei se você tem tempo
de ler jornais, ou se se contenta agora
em correr os olhos sobre os relatórios de
seus assessores. O fato é que a pobreza e,
por conseguinte, também a miséria aumentaram neste país sob o seu governo.
Segundo o IBGE, o rendimento médio
da classe trabalhadora caiu 11,6% de dezembro de 2002 a outubro deste ano. No
mesmo período, e sempre segundo os
dados oficiais do IBGE, o desemprego
aumentou de 10,5% para quase 13%.
A razão desse resultado funesto era
previsível, e você deve se lembrar de que
ela lhe foi longamente explicada antes
da eleição. O nosso país está sendo inexoravelmente sufocado pela dívida pública, cujo principal já ultrapassa metade do PIB, sendo que o pagamento efetivo dos juros corresponde a 10% de toda
a riqueza anualmente produzida.
Por falar em juros, no corrente ano as
despesas com o serviço da dívida pública mais do que dobraram em relação a
2002, tendo superado em 22,5% todos
os gastos da Previdência Social. A alternativa, portanto, no início do seu governo, era muito clara: reduzir as despesas
financeiras ou fazer economias à custa
do direito fundamental à Previdência de
todos os brasileiros. Desculpe lembrar-lhe de que, além de optar por esta última
solução, você ainda aumentou em muito as despesas com juros.
Mas agora eu lhe pergunto: com toda
essa asfixia financeira, como pretende o
seu governo conseguir recursos públicos para os investimentos em infra-estrutura (energia, transportes e comunicações), em ciência e tecnologia, em
educação e saúde, ou em reforma agrária, sem os quais não há crescimento
econômico e muito menos redução da
desigualdade social? Certamente você
não acredita que os capitalistas do mundo inteiro estão ansiosos para sacar os
recursos aplicados na especulação financeira e investi-los aqui nesses setores, de baixíssima ou nula rentabilidade.
É claro, os seus ministros da área econômica dirão que é graças a esse sacrifício -imposto, aliás, não a eles pessoalmente, mas sim ao povo- que o país
ostenta agora a condição de primeiro da
classe no mundo das finanças internacionais e que sem isso teríamos perdido
todo o crédito, e os capitais estrangeiros
cessariam de vir para o nosso país.
Diagnóstico falso, meu caro. A maior
parte do dinheiro que entra no país é de
cunho especulativo: os capitalistas vêm
ao Brasil para se aproveitar dos altíssimos juros aqui praticados e sair de imediato ao primeiro sinal de perigo. Na
verdade, nós não precisamos desses capitais; são eles, ao contrário, que precisam de nós.
Lembrarei apenas que você foi eleito para servir o povo brasileiro, e não para agradar aos grandes deste mundo
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Aliás, é útil você saber que não são os
países ricos que sustentam as nações
pobres, mas bem o contrário. Entre
1997 e 2002, a transferência líquida de
recursos financeiros do mundo subdesenvolvido para os países ricos foi de
quase US$ 700 bilhões, ou seja, muito
mais do que o PIB brasileiro. Segundo
dados fornecidos pelo Banco Mundial,
entre 1982 e 2000 a América Latina pagou, pelos empréstimos financeiros tomados, US$ 1,45 trilhão, o que equivale
a mais de quatro vezes o montante total
da dívida de origem.
Mas então, como mudar? -perguntará você. Lembra-se da renovação do
acordo com o FMI, que a sua equipe
econômica anunciou quando você viajava pela África? Eles lhe disseram que
era só uma garantia (ou "backup", na
linguagem que tanto prezam). Esqueceram de lhe contar o essencial: com a renovação desse acordo, a sua política
econômica ficará congelada até o final
do seu mandato. Se você quiser mudá-la, terá que romper com o FMI.
Meu caro, eu teria ainda muito mais a
dizer, mas o espaço é exíguo. Lembrarei
apenas que você foi eleito para servir
(como servo, mesmo) o povo brasileiro,
e não para agradar aos grandes deste
mundo; e que todo o seu passado de vida digna, no sindicato e no partido, corre um sério risco de ser apagado da memória popular se o seu governo continuar no rumo atual. Apesar de tudo, eu
e muitos outros continuamos a confiar
naquele Lula generoso e justo que conhecemos e que permanecerá sempre o
mesmo, se Deus quiser.
Esteja certo de que, no juízo final da
história, o sorriso de gratidão da pobre
velhinha que viu seus filhos e netos conseguirem um emprego digno graças à
ação do seu governo pesará muito, mas
muito mais, na balança da vida do que
os elogios dos banqueiros do mundo todo à proclamada "seriedade" de sua política econômica.
Fábio Konder Comparato, 67, jurista, doutor
pela Universidade de Paris, é professor titular da
Faculdade de Direito da USP e doutor honoris
causa da Universidade de Coimbra.
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