São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Incidentes diplomáticos

Não é difícil presumir o roteiro que levou o ministro Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia, a protagonizar o primeiro incidente internacional do governo empossado. Quadro oriundo dos tempos da esquerda nacionalista, anos 50/60, o ministro certamente respondeu por reflexo automático, ao dizer que o Brasil não renunciaria a nenhuma tecnologia nuclear. Instado pela BBC, ele repisou que o país não abria mão de conhecer nenhuma fase ou aspecto dessa tecnologia, embora ressalvasse que, signatário do Tratado de Não-Proliferação, o Brasil não cogita produzir armas nucleares. Mal-acostumado ao cargo para o qual foi pego de surpresa, o ministro também não se deu conta de que agora fala num megafone. A afirmação da capacidade nacional, em todos os terrenos, foi estratégia da esquerda no apogeu do nacionalismo. Tratava-se de organizar uma aliança de classes interna, reunida contra o imperialismo, e portanto nacionalista. De passagem, cortejava-se a mentalidade das Forças Armadas, que se viam no papel de condutoras da emancipação nacional. A energia nuclear, na época, parecia uma caixa de Pandora, o petróleo do futuro. Ainda não se sabia, então, que seu emprego pacífico continuaria sendo potencialmente perigoso, nem que se tornaria crescentemente impopular. Não se sabia, tampouco, que as armas atômicas só podem ser usadas, como em Hiroshima, enquanto apenas um país as detém. O Brasil abdicou do programa atômico militar por conta de uma aplicação local desse mesmo princípio. Cristalizou-se a tese, corrente em círculos diplomáticos, de que abrir uma corrida nuclear não interessa ao país mais forte de uma região: seu rival o acompanhará, anulando para sempre a superioridade do primeiro, tal como entre Índia e Paquistão.
 
A posse de Lula foi precedida por violenta agitação, sobretudo na internet, de grupos da extrema direita caribenha com ligações nos Estados Unidos. Com base em indícios plausíveis a partir dos quais se projetaram os mais paranóicos exageros, denunciaram a existência de uma versão "cucaracha" do "eixo do mal", capitaneada por Fidel, Chávez e Lula.
Dar consistência a essa campanha submersa em que se misturam fatos e boatos é o mal menor da política do novo governo brasileiro em relação à crise da Venezuela. O Brasil corre o risco de se ver atrelado a um governante que periclita no cargo há um ano, vítima e ao mesmo tempo responsável pela divisão do país em duas metades irreconciliáveis.
É evidente que o Brasil deve respeitar governos instalados, sobretudo se legítimos. O governo Chávez tem se mantido, nas condições dadas, dentro dos limites da legalidade, e sua legitimidade proveio de reiteradas eleições. Parece que a estrutura legal vigente no país só autoriza um referendo após agosto deste ano, como alega o governo.
No entanto há situações em que o clamor popular se mostra tão intenso, sua obstinação tão acerada, que termina por se impor às instituições, mesmo que mais tarde, como no caso Collor, as acusações contra o governante não se consumem em sentença judicial. Essa perspectiva, muito palpável, deveria aconselhar ao governo Lula uma atitude mais equidistante.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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