São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Acesso à vida

ANA RABELLO

Em artigo intitulado "Compromisso com a vida", publicado nesta Folha ("Tendências/Debates", pág. A3, 18/12/02), o dr. Flávio Vormittag, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, proclama os benefícios oferecidos por essa indústria nas últimas décadas.
Relata ele o caso de um empresário, curado de uma doença gravíssima por ter sido incluído em estudo clínico de um medicamento inédito, e nos deixa a mensagem de que "milhares de pessoas ao redor do mundo agradecem, pois, graças às invenções dos laboratórios farmacêuticos, elas ganharam uma nova chance e, hoje, podem continuar em busca da realização de seus sonhos e de um futuro melhor".
Comemoramos todos essa revolução na saúde que eleva a expectativa e a qualidade de vida de parte da humanidade. Entretanto, lamentavelmente, outros milhões de pessoas não puderam pagar pela segunda chance e ficar para ver o futuro. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), as doenças transmissíveis levaram à morte 14 milhões de pessoas em todo o mundo em 1999. Essas doenças guardam inexorável relação com a pobreza e constituem 25% da carga de doenças nos países de renda baixa e média, comparados com 3% nos países de renda alta.
A indústria farmacêutica multinacional é o setor de mercado mais rentável, com média de 16,2% de lucro, à frente das companhias financeiras (11,6%) e do ramo de bebidas (10%). As vendas refletem a política de investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) voltada para o mercado. O mercado não inclui os 4 bilhões de pessoas que sobrevivem com menos de US$ 2 ao dia, 90% deles vivendo na Ásia ou na África subsaariana.
Ainda segundo a OMS, 90% dos investimentos em pesquisa em saúde se destinam a condições que correspondem a 10% da carga mundial de doenças. De acordo com a organização MSF (Médicos Sem Fronteiras), de 1.393 novos produtos comercializados entre 1975 e 1999, apenas 13 são para tratamento de doenças tropicais, que respondem por 12% da carga global de doenças.
Um dos fatores alegados para tentar justificar o desequilíbrio entre necessidade e acesso a medicamentos é o elevado custo de P&D de uma droga. Em geral, os cálculos incluem a perda de juros que poderiam ser ganhos na aplicação monetária desse investimento e as despesas com propaganda, mas excluem os incentivos fiscais para P&D (entre 16% e 39%) e a pesquisa realizada em instituições públicas. Assim, dependendo dos cálculos, esses custos podem variar de US$ 10 milhões a US$ 800 milhões.
As estimativas de investimento em P&D são argumentos para a extensão das patentes em tempo e em abrangência geográfica, bem como para a manutenção dos preços cobrados nos diferentes mercados. O lucro excessivo de venda de um medicamento pode ser entendido pela competição de mercado após a expiração de uma patente. Por exemplo, um ano após a expiração da patente do Prozac, a fluoxetina genérica foi disponibilizada por diversas companhias farmacêuticas a 2% do preço do Prozac.


A indústria farmacêutica multinacional é o setor de mercado mais rentável, com média de 16,2% de lucro


A exclusividade de produção é protegida pela Organização Mundial do Comércio, que reafirmou, no encontro de Doha, que "não há circunstâncias nas quais os direitos humanos fundamentais devam ser subordinados às exigências de proteção da propriedade intelectual". O Brasil é exemplo e tem papel de liderança na discussão do acesso às drogas anti-retrovirais.
Os países em desenvolvimento, com 80% da população mundial, respondem por menos de 20% das vendas mundiais de medicamentos. Esta situação de desigualdade levou a MSF a lançar, em 1999, a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais e a constituir o Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, formado por diversas instituições envolvidas com a saúde mundial. Do Brasil, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) é membro fundadora.
São exemplos de doenças negligenciadas malária, tuberculose, doença de Chagas, leishmanioses, tripanossomíase africana, dengue, lepra, filariose e esquistossomose. Elas têm em comum o fato de não serem rentáveis à indústria farmacêutica.
A era da revolução da saúde chegará para essa parte da humanidade?
O empresário mencionado no artigo do dr. Vormittag descobriu que uma droga nova poderia lhe salvar a vida na internet. Poderemos um dia ver um doente do vale do Jequitinhonha a navegar pela internet em busca de uma forma de sobreviver? Excluídos não têm acesso à alimentação, à educação, à informação, à medicação e à dignidade.
Em seu texto, o dr. Vormittag antecipa que "os próximos 20 anos serão pródigos, com a chegada de cerca de mil novos e revolucionários medicamentos para prevenir, controlar e curar doenças, salvando milhões, talvez bilhões de vidas em todo o mundo", e lista uma série de doenças auto-imunes, neurológicas e degenerativas. Nenhuma previsão para as doenças negligenciadas.
Não resta dúvida de que políticas de acesso a medicamentos essenciais são de responsabilidade pública. Urge que se defina a agenda de prioridades em relação a desenvolvimento e acesso a medicamentos, com incentivo à pesquisa pública voltada aos interesses nacionais. Para isso, é necessário que se faça um esforço de criatividade e que se estabeleçam parcerias entre órgãos de fomento, universidades, instituições de pesquisa, sociedade e indústria. Podem vir daí soluções inovadoras para enfrentarmos mais essa injustiça gerada pela desigualdade econômica.

Ana Rabello, 43, doutora em medicina tropical pela Universidade Federal de Minas Gerais, é pesquisadora titular do Centro de Pesquisas René Rachou (MG), da Fiocruz.
ana@cpqrr.fiocruz.br


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