|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Acesso à vida
ANA RABELLO
Em artigo intitulado "Compromisso com a vida", publicado nesta
Folha ("Tendências/Debates", pág. A3,
18/12/02), o dr. Flávio Vormittag, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, proclama os benefícios oferecidos por essa indústria
nas últimas décadas.
Relata ele o caso de um empresário,
curado de uma doença gravíssima por
ter sido incluído em estudo clínico de
um medicamento inédito, e nos deixa a
mensagem de que "milhares de pessoas
ao redor do mundo agradecem, pois,
graças às invenções dos laboratórios
farmacêuticos, elas ganharam uma nova chance e, hoje, podem continuar em
busca da realização de seus sonhos e de
um futuro melhor".
Comemoramos todos essa revolução
na saúde que eleva a expectativa e a qualidade de vida de parte da humanidade.
Entretanto, lamentavelmente, outros
milhões de pessoas não puderam pagar
pela segunda chance e ficar para ver o
futuro. Segundo a OMS (Organização
Mundial da Saúde), as doenças transmissíveis levaram à morte 14 milhões de
pessoas em todo o mundo em 1999. Essas doenças guardam inexorável relação com a pobreza e constituem 25% da
carga de doenças nos países de renda
baixa e média, comparados com 3% nos
países de renda alta.
A indústria farmacêutica multinacional é o setor de mercado mais rentável,
com média de 16,2% de lucro, à frente
das companhias financeiras (11,6%) e
do ramo de bebidas (10%). As vendas
refletem a política de investimentos em
pesquisa e desenvolvimento (P&D) voltada para o mercado. O mercado não
inclui os 4 bilhões de pessoas que sobrevivem com menos de US$ 2 ao dia, 90%
deles vivendo na Ásia ou na África subsaariana.
Ainda segundo a OMS, 90% dos investimentos em pesquisa em saúde se
destinam a condições que correspondem a 10% da carga mundial de doenças. De acordo com a organização MSF
(Médicos Sem Fronteiras), de 1.393 novos produtos comercializados entre
1975 e 1999, apenas 13 são para tratamento de doenças tropicais, que respondem por 12% da carga global de
doenças.
Um dos fatores alegados para tentar
justificar o desequilíbrio entre necessidade e acesso a medicamentos é o elevado custo de P&D de uma droga. Em geral, os cálculos incluem a perda de juros
que poderiam ser ganhos na aplicação
monetária desse investimento e as despesas com propaganda, mas excluem os
incentivos fiscais para P&D (entre 16%
e 39%) e a pesquisa realizada em instituições públicas. Assim, dependendo
dos cálculos, esses custos podem variar
de US$ 10 milhões a US$ 800 milhões.
As estimativas de investimento em
P&D são argumentos para a extensão
das patentes em tempo e em abrangência geográfica, bem como para a manutenção dos preços cobrados nos diferentes mercados. O lucro excessivo de
venda de um medicamento pode ser entendido pela competição de mercado
após a expiração de uma patente. Por
exemplo, um ano após a expiração da
patente do Prozac, a fluoxetina genérica
foi disponibilizada por diversas companhias farmacêuticas a 2% do preço do
Prozac.
A indústria farmacêutica multinacional é o setor
de mercado mais rentável, com média de 16,2% de lucro
|
A exclusividade de produção é protegida pela Organização Mundial do Comércio, que reafirmou, no encontro de
Doha, que "não há circunstâncias nas
quais os direitos humanos fundamentais devam ser subordinados às exigências de proteção da propriedade intelectual". O Brasil é exemplo e tem papel de
liderança na discussão do acesso às drogas anti-retrovirais.
Os países em desenvolvimento, com
80% da população mundial, respondem
por menos de 20% das vendas mundiais
de medicamentos. Esta situação de desigualdade levou a MSF a lançar, em 1999,
a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais e a constituir o Grupo de
Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, formado por diversas instituições envolvidas com a saúde mundial. Do Brasil, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) é membro fundadora.
São exemplos de doenças negligenciadas malária, tuberculose, doença de
Chagas, leishmanioses, tripanossomíase africana, dengue, lepra, filariose e esquistossomose. Elas têm em comum o
fato de não serem rentáveis à indústria
farmacêutica.
A era da revolução da saúde chegará
para essa parte da humanidade?
O empresário mencionado no artigo
do dr. Vormittag descobriu que uma
droga nova poderia lhe salvar a vida na
internet. Poderemos um dia ver um
doente do vale do Jequitinhonha a navegar pela internet em busca de uma
forma de sobreviver? Excluídos não têm
acesso à alimentação, à educação, à informação, à medicação e à dignidade.
Em seu texto, o dr. Vormittag antecipa que "os próximos 20 anos serão pródigos, com a chegada de cerca de mil
novos e revolucionários medicamentos
para prevenir, controlar e curar doenças, salvando milhões, talvez bilhões de
vidas em todo o mundo", e lista uma série de doenças auto-imunes, neurológicas e degenerativas. Nenhuma previsão
para as doenças negligenciadas.
Não resta dúvida de que políticas de
acesso a medicamentos essenciais são
de responsabilidade pública. Urge que
se defina a agenda de prioridades em relação a desenvolvimento e acesso a medicamentos, com incentivo à pesquisa
pública voltada aos interesses nacionais. Para isso, é necessário que se faça
um esforço de criatividade e que se estabeleçam parcerias entre órgãos de fomento, universidades, instituições de
pesquisa, sociedade e indústria. Podem
vir daí soluções inovadoras para enfrentarmos mais essa injustiça gerada pela
desigualdade econômica.
Ana Rabello, 43, doutora em medicina tropical pela Universidade Federal de Minas Gerais, é
pesquisadora titular do Centro de Pesquisas René Rachou (MG), da Fiocruz.
ana@cpqrr.fiocruz.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Octavio Bueno Magano: FGTS Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|