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TENDÊNCIAS/DEBATES
É positiva eventual revisão da Lei da Anistia?
NÃO
Violar para resgatar?
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO
NOS ÚLTIMOS dias, a imprensa
noticiou divergências entre o
ministro da Defesa e o secretário nacional dos Direitos Humanos
com respeito à terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos
do Ministério da Justiça. Entre as dissidências apontadas, a juridicamente
mais importante diz com a diretriz
25, que prevê a "revogação de leis remanescentes do período 1964-1985
que sejam contrárias à garantia dos
direitos humanos ou tenham dado
sustentação a graves violações".
Setores do Ministério da Defesa e
das Forças Armadas creem, com alguma razão, que esse objetivo estratégico abrigue o firme propósito de revogação da lei 6.683/79 -a conhecida
Lei da Anistia-, admitindo, por consequência, a persecução criminal em
juízo dos agentes da repressão política pós-64.
Sobre essa polêmica, é preciso tomar o cuidado de não deflagrar, sob o
pálio do resgate humanitário, novas
violações de garantias fundamentais.
O artigo 5º, XL, da Constituição dispõe que a lei penal não retroagirá, senão para beneficiar o réu. O Código
Penal, por sua vez, estabelece que se
extingue a punibilidade por anistia,
graça e indulto (atual artigo 107, II).
Por fim, sabe-se que o artigo 1º da
lei 6.683/79 anistiou "a todos quantos, no período compreendido entre 2
de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979, cometeram crimes políticos ou
conexo com estes", considerando conexos, para efeitos da anistia, "crimes
de qualquer natureza relacionados
com crimes políticos ou praticados
por motivação política".
Operou-se, com a simples entrada
em vigor da lei (28/8/79), a extinção
da punibilidade em favor de todos
aqueles que, processados ou não, tenham praticado crimes políticos e outros a ele conexos, independentemente de sua natureza.
Logo, a lei favoreceu os autores de
crimes comuns conexos (delitos políticos impróprios), inclusive os que,
segundo os atuais critérios do Tribunal Penal Internacional, sejam classificáveis como crimes contra a humanidade. Ao menos assim os tribunais
têm interpretado a Lei da Anistia
quanto aos crimes comuns (por
exemplo, STF, HC 57.724/RS).
Então, do ponto de vista penal-constitucional, nada mais pode ser
feito. E a questão não tem a ver com a
imprescritibilidade dos crimes contra
a humanidade, como se tem ouvido
aqui e ali. Tem a ver, sim, com a garantia da irretroatividade da lei penal "in
pejus", que goza de imutabilidade
constitucional (artigo 60, parágrafo
4º, IV, da Constituição).
Ainda que se consiga aprovar, no
Congresso, lei federal que revogue o
artigo 1º da lei 6.683/79, tal expediente não terá, no âmbito penal, mais que
um efeito simbólico: a bem das garantias fundamentais em vigor, jamais
será possível lograr a condenação criminal de "terroristas", "torturadores"
e que tais, em relação a crimes políticos ou conexos praticados entre setembro de 1961 e agosto de 1979, pela
simples razão de que tal persecução
representaria a retroação, no tempo,
de legislação penal mais severa.
A não ser, é claro, que os tribunais
-e muito particularmente o STF-
construam tese nova, a partir da qual
os crimes contra a humanidade não
possam, em nenhuma circunstância,
ser reconhecidos como "políticos" ou
com eles conexos.
Mas isso não diz com a legislação,
que tampouco pode ditar ao STF, em
via de interpretação "autêntica", como interpretar a Constituição em
certo caso concreto. Haveria aí grave
investida contra o princípio de independência entre os Poderes da República (ver artigos 2º e 102 da CF).
Com isso não quero pregar o cômodo esquecimento. Deve-se, porém,
buscar o modo constitucionalmente
correto de resgatar a memória e os direitos de cidadania lesados.
Que se abram os arquivos da caserna. Que se descubra, afinal, a verdade
histórica (de parte a parte, com isonomia). Que se legisle, inclusive, sobre a
responsabilidade civil de tantos
quantos tenham violado direitos humanos fundamentais entre 1964 e
1984, quiçá adequando os prazos de
prescrição civil para as hipóteses de
reparação de danos pessoais ou biológicos. Mas não se queira purgar feridas abrindo outras.
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO , 36, juiz titular da
1ª Vara do Trabalho de Taubaté, doutor em direito penal e
professor da Faculdade de Direito da USP, é vice-presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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