São Paulo, sábado, 09 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

É positiva eventual revisão da Lei da Anistia?

NÃO

Violar para resgatar?

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO

NOS ÚLTIMOS dias, a imprensa noticiou divergências entre o ministro da Defesa e o secretário nacional dos Direitos Humanos com respeito à terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Entre as dissidências apontadas, a juridicamente mais importante diz com a diretriz 25, que prevê a "revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos ou tenham dado sustentação a graves violações".
Setores do Ministério da Defesa e das Forças Armadas creem, com alguma razão, que esse objetivo estratégico abrigue o firme propósito de revogação da lei 6.683/79 -a conhecida Lei da Anistia-, admitindo, por consequência, a persecução criminal em juízo dos agentes da repressão política pós-64. Sobre essa polêmica, é preciso tomar o cuidado de não deflagrar, sob o pálio do resgate humanitário, novas violações de garantias fundamentais.
O artigo 5º, XL, da Constituição dispõe que a lei penal não retroagirá, senão para beneficiar o réu. O Código Penal, por sua vez, estabelece que se extingue a punibilidade por anistia, graça e indulto (atual artigo 107, II).
Por fim, sabe-se que o artigo 1º da lei 6.683/79 anistiou "a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes", considerando conexos, para efeitos da anistia, "crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".
Operou-se, com a simples entrada em vigor da lei (28/8/79), a extinção da punibilidade em favor de todos aqueles que, processados ou não, tenham praticado crimes políticos e outros a ele conexos, independentemente de sua natureza.
Logo, a lei favoreceu os autores de crimes comuns conexos (delitos políticos impróprios), inclusive os que, segundo os atuais critérios do Tribunal Penal Internacional, sejam classificáveis como crimes contra a humanidade. Ao menos assim os tribunais têm interpretado a Lei da Anistia quanto aos crimes comuns (por exemplo, STF, HC 57.724/RS).
Então, do ponto de vista penal-constitucional, nada mais pode ser feito. E a questão não tem a ver com a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, como se tem ouvido aqui e ali. Tem a ver, sim, com a garantia da irretroatividade da lei penal "in pejus", que goza de imutabilidade constitucional (artigo 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição).
Ainda que se consiga aprovar, no Congresso, lei federal que revogue o artigo 1º da lei 6.683/79, tal expediente não terá, no âmbito penal, mais que um efeito simbólico: a bem das garantias fundamentais em vigor, jamais será possível lograr a condenação criminal de "terroristas", "torturadores" e que tais, em relação a crimes políticos ou conexos praticados entre setembro de 1961 e agosto de 1979, pela simples razão de que tal persecução representaria a retroação, no tempo, de legislação penal mais severa.
A não ser, é claro, que os tribunais -e muito particularmente o STF- construam tese nova, a partir da qual os crimes contra a humanidade não possam, em nenhuma circunstância, ser reconhecidos como "políticos" ou com eles conexos.
Mas isso não diz com a legislação, que tampouco pode ditar ao STF, em via de interpretação "autêntica", como interpretar a Constituição em certo caso concreto. Haveria aí grave investida contra o princípio de independência entre os Poderes da República (ver artigos 2º e 102 da CF).
Com isso não quero pregar o cômodo esquecimento. Deve-se, porém, buscar o modo constitucionalmente correto de resgatar a memória e os direitos de cidadania lesados.
Que se abram os arquivos da caserna. Que se descubra, afinal, a verdade histórica (de parte a parte, com isonomia). Que se legisle, inclusive, sobre a responsabilidade civil de tantos quantos tenham violado direitos humanos fundamentais entre 1964 e 1984, quiçá adequando os prazos de prescrição civil para as hipóteses de reparação de danos pessoais ou biológicos. Mas não se queira purgar feridas abrindo outras.


GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO , 36, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, doutor em direito penal e professor da Faculdade de Direito da USP, é vice-presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Kenarik Boujikian Felippe: Justiça não é revanchismo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.