São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O ovo da serpente

ALOIZIO MERCADANTE

Obama não pode se enganar. Ele, que se opõe ao unilateralismo político, tem de precaver-se contra o unilateralismo econômico

EM MENOS de um ano, as autoridades econômicas da maior parte das nações passaram da confiança incondicional na autorregulação do mercado à mais amarga perplexidade. A crise reduziu suas convicções a um capítulo precário da história do pensamento econômico.
Porém, uma crise dessa magnitude, sistêmica e mundial, surgida no cerne da economia capitalista, não foi gerada sem que houvesse indícios do desastre que se anunciava. Em perspectiva, o que surpreende mais não é sua força e celeridade, mas a inação das autoridades ao longo de sua gestação.
Alan Greenspan foi um dos homens que tinham informação e poder para evitar o pior. Por que não o fez? Meu erro, disse ele, foi acreditar na autorregulação do mercado. É possível.
Mitos e ilusões, quando arraigados, adquirem força de realidade incontestável. A Terra plana e o geocentrismo já foram verdades universalmente aceitas. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à crença na autorregulação do mercado.
Contudo, é possível também que a inação e a crença que a justificava tenham sido suscitadas por interesses, o que gera inquietantes reflexões sobre a suposta necessidade de autonomia incondicional para as autoridades monetárias.
No caso da economia norte-americana, epicentro da crise, há concretos interesses que contribuíram para ocasionar a recessão mundial.
Nos últimos 20 anos, houve uma "desterritorialização" da produção dos EUA. Em busca de custos baixos, muitas empresas deslocaram suas bases produtivas para o exterior, especialmente para China e Índia, o que limitou o crescimento do emprego e dos salários no mercado de trabalho dos EUA. No entanto, na maior parte desse período, o consumo nos EUA continuou a se expandir. Como foi feito esse aparente milagre?
Simples. Montou-se um engenhoso esquema financeiro que permitiu aos EUA absorver 60% dos fluxos mundiais de capital. Dessa maneira, foram financiados os seus gigantescos déficits gêmeos e um consumo doméstico incompatível com seu PIB.
Esse descolamento entre produção e consumo e entre o sistema financeiro e a chamada "economia real" só conseguiu ser sustentado porque permitiu-se aos bancos funcionar com níveis inusitados de alavancagem.
Ao final desse processo, ergueu-se gigantesca pirâmide financeira que concentrava 75% da liquidez internacional e equivalia a oito PIBs globais. Convenhamos: era algo muito difícil de escapar à percepção das autoridades monetárias. Mas, enquanto a economia dos EUA cresceu e muita gente ganhou dinheiro, fez-se vista grossa a esse monumental ovo financeiro que, ao partir-se, liberou a serpente da crise que tomou o mundo de roldão.
Entretanto, já há outro ovo de serpente à vista. Trata-se do protecionismo. Nas crises, a tentação de jogar os custos da recessão para outros países é grande e tem apelo popular. Vende-se a ideia de que as medidas protecionistas salvarão os empregos. Não é isso o que acontece.
Na crise de 1929, os EUA, numa tentativa vã de se protegerem, implantaram as tarifas Smoot-Hawley, quadruplicando as taxas de importação de 3.200 produtos. Outros países retaliaram, o que fez o comércio mundial cair de US$ 18 bilhões, em 1929, para cerca de US$ 6 bilhões, em 1933. Foi um desastre que aprofundou a crise e destruiu empregos em todo o mundo, principalmente nos EUA.
Ameaçando repetir 1929, o pacote econômico de Obama contém cláusula que permite apenas o uso do pouco competitivo aço norte-americano nos projetos de infraestrutura, o que agrava a onda protecionista que já prejudica oito setores exportadores do Brasil, como carnes e eletroeletrônicos. É uma péssima sinalização, pois o combate à crise não é tarefa que possa ser efetuada apenas em âmbito nacional, nem mesmo nos EUA, a maior economia do planeta.
No seu filme filme "O Ovo da Serpente", Bergman mostra como o monstro do nazismo podia ser visto, antes de surgir, através da membrana transparente do seu ovo.
Desastres políticos e econômicos, semelhantes em sua natureza, nutrem-se da mesma mistura de complacência e autoengano. Greenspan e outros enganaram-se ou foram complacentes. Agora, Obama não pode se enganar. Ele, que se opõe ao unilateralismo político, tem de precaver-se contra o unilateralismo econômico.
A única maneira de enfrentar a crise atual é com cooperação internacional ágil em torno de medidas que transcendam velhos paradigmas. E a melhor forma de evitar novos desastres é construir uma ordem mundial mais regulada, simétrica e assentada no multilateralismo.


ALOIZIO MERCADANTE, 54, economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República pelo PT-SP.


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