São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2009 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A maratona da palavra
CÁSSIO SCHUBSKY
EM BOA hora a Academia Brasileira de Letras baixou, literariamente, decreto instituindo que 2009 passa a ser o Ano Euclides da Cunha, em razão do centenário da morte do escritor (engenheiro, pensador, historiador, geógrafo, sociólogo, ecologista, repórter, poeta...). Ao fazê-lo, a ABL estimula o debate sobre a importância do autor, ajudando a libertá-lo dos estereótipos que marcam sua vida e sua criação artística. Euclides não foi apenas o escritor de uma obra-prima de difícil leitura ("Os Sertões"), morto pelo amante (Dilermando) da esposa (Anna). É certo que apenas o grande livro seria suficiente para imortalizar o autor. Afinal, em que pesem o determinismo geográfico e o etnocentrismo reducionista, comuns na época em que a obra foi escrita, seu rico conteúdo continua gerando estudos, reflexões, abordagens múltiplas, a desvelar sua contribuição à compreensão do Brasil e a reiterar seu valor como obra de arte. Cite-se, como exemplo, a métrica poética de diversas passagens do texto, apontada por Guilherme de Almeida e Augusto de Campos, em notáveis estudos. Sem falar na exuberante, riquíssima, genial -escasseiam os adjetivos- montagem que o Grupo Oficina Uzyna Uzona faz de "Os Sertões", em sucessivas apresentações nos últimos anos. De outro lado, o grande livro é temperado por uma honestidade intelectual a toda prova: na introdução, o autor penitencia-se pelo erro histórico ("um crime", escreve) que se cometeu contra a população sertaneja dizimada em Canudos, afirmando a necessidade de registrar, para a posteridade, os descalabros perpetrados no sertão baiano pela República nascente. Justamente Euclides, que anos antes escrevera artigos reclamando que o movimento messiânico de Antonio Conselheiro fosse debelado com pulso forte... Mas que, ao testemunhar, pessoalmente, a chacina, horroriza-se e escreve seu libelo antológico, obra sem par na literatura universal. Na celebração centenária, emergirão, por certo, facetas inumeráveis de Euclides, esmaecidas pelo tempo, como o escritor de artigos e o palestrante de conferências que versavam sobre os mais variados assuntos -do poeta Castro Alves à Revolta da Armada, passando pela ocupação da Amazônia e chegando a análises sublimes sobre política internacional. É incrível ler Euclides dissertando, por exemplo, sobre as cidades mortas do interior paulista após o auge do café, antecipando reflexões que celebrizariam Monteiro Lobato anos mais tarde. Ou, então, as frequentes denúncias do ecologista indignado, vituperando contra queimadas e desmatamentos -há mais de cem anos! Inquietante é ler, também, estultices de um homem tão ilustrado -por exemplo, quando se refere ao Tibete, em determinado artigo: "Um terço de sua população é de lamas -monges miseráveis e repulsivos, vestidos de trapos de mortalhas, meio idiotas e errantes de mosteiro em mosteiro". Também virão à baila textos de biógrafos e comentadores de Euclides, em reedições de obras há muito esgotadas e em novas publicações, a traçar o vasto painel de sua contribuição intelectual. Sem falar em exposições, seminários, artigos em torno da vida e da obra (literária e de engenharia). Um aspecto, no que tange a Euclides, parece-me essencial. Seus textos ensejam uma reflexão sobre o estímulo ao ato de ler em um país de baixíssimos índices de leitura. Como animar, sobretudo as novas gerações, a encarar a árdua tarefa de se debruçar sobre os complexos textos euclidianos? Porque ler Euclides não é bolinho... Parece até que ele engoliu um dicionário, de tal forma os vocábulos vão se encachoeirando, caudalosos, numa profusão de termos, refulgindo, aos borbotões, em tom ora árido e parcimonioso, ora torrencial e arrebatado. Enfim, a leitura para o simples mortal torna-se tormentosa. No caso, prazer do texto, saber com sabor, não são facilidades imediatas, tão propaladas em nossa cultura do consumo. Via de regra, ler Euclides da Cunha é um exercício árduo, uma maratona, em que o desgaste só é inteiramente recompensado, como em uma corrida, ao final, quando se sente o torpor causado pela endorfina. No começo, alguém pode até sentir azia com a leitura... Mas o bom é que o remédio se obtém com o próprio texto, que, depois de deglutido, provoca um bem-estar inaudito. Para lê-lo, é preciso treino, para apreender o rico conteúdo escondido nas brenhas de seu linguajar erudito. Antes de mais nada, aproveitemos que temos todos de recorrer ao dicionário e às gramáticas em tempos de reforma ortográfica. Somem-se mapas geográficos e geológicos. Ademais, o próprio autor, em passagem de seu livro "Contrastes e Confrontos", sugere uma fórmula que bem serve para uma leitura frutuosa: "No remanso das culturas, na disciplina da atividade, adstrita a longos esforços consistentes". CÁSSIO SCHUBSKY, 43, formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, é editor e historiador. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Aloizio Mercadante: O ovo da serpente Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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