São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os maiores culpados pelos blecautes

EVANDRO EMILIO DE SOUZA LIMA

As discussões para apuração dos culpados pelos blecautes lembram a questão de quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Sabemos que a simples descrição dos fatos não resolve esse tipo de dilema, é preciso analisar o processo evolutivo. Um bom exemplo disso foi o debate, na Câmara de Deputados, entre o diretor-presidente da Celesc (Companhia de Energia Elétrica de Santa Catarina), Carlos Schneider, e o diretor-geral da Aneel, Mário Abdo, sobre o blecaute em Florianópolis.
Schneider explicou que o incêndio na galeria abaixo do piso da ponte fora causado por um maçarico, instrumento também utilizado para soldas nas companhias de eletricidade dos países desenvolvidos. Um cabo de 13 kV, sob manutenção, dividia a galeria com outros dois, maiores, de 138 kV, responsáveis pela alimentação de toda a ilha de Santa Catarina. Um desses abastecia a subestação Ilha-Centro, o outro a subestação Trindade -essas subestações só serão interligadas em 2004. Por hora, não há alternativas: uma falha em qualquer um desses cabos apaga metade da ilha.


Blecautes causados por catástrofes naturais, como grandes enchentes, serão exceções. Essa percepção falta à Aneel


O acidente do dia 29 de outubro de 2003 atingiu simultaneamente os dois cabos, apagando por cerca de 55 horas toda a ilha. Schneider chamou atenção para o fato de que, na rede da Celesc -como, aliás, em todo o Brasil- existem muitos outros pontos que ele chamou de vulneráveis, porque se neles houver uma falha não haverá alternativa de suprimento. Falou, também, que havia pontos frágeis, onde os equipamentos trabalham nos limites de suas capacidades. Mas lembrou que, apesar de todos esses problemas, a Celesc tinha conquistado o Prêmio Satisfação do Cliente 2003, categoria Ouro, concedido pela Comissão de Integração Energética Regional de Qualidade, organização que reúne as maiores empresas distribuidoras da América do Sul.
A exposição de Mário Abdo foi cartesiana. Lembrou que a Aneel, criada em dezembro de 1996, tem as finalidades de regular e fiscalizar a distribuição de energia elétrica. Com esse escopo foi celebrado, em 1999, o contrato com a Celesc. Foram acordadas metas que almejavam a melhoria, em relação aos anos anteriores, 97 e 98, dos dois principais indicadores de qualidade da energia fornecida ao consumidor: DEC, número de horas de interrupção do fornecimento, e FEC, freqüência dessas ocorrências. Mário Abdo mostrou um quadro com as fiscalizações feitas na Celesc e as constatações e recomendações resultantes. Aparentemente perfeito o trabalho da Aneel.
Com o blecaute, os DEC e FEC pactuados não puderam ser cumpridos e a Celesc foi multada em R$ 7,917 milhões. Ainda, o Código do Consumidor é claro: os prejuízos causados pelos blecautes têm de ser ressarcidos. Quem os pagará, também a Celesc?
É estranho que uma companhia escolhida pelos consumidores como a melhor da América do Sul seja considerada culpada. Em vez de gastar seus recursos eliminando, em seus sistemas, pontos frágeis e vulneráveis -verdadeiras minas, prontas para explodir a qualquer momento-, terá que pagar multa e indenizações. E seria ela, verdadeiramente, a maior culpada?
Uma observação feita no final do debate pelo deputado Mauro Passos (PT-SC) evidenciou que não, nenhuma das recomendações feitas à Celesc pela Aneel evitaria o blecaute. O contrato desta com a Celesc, assinado em 99, tem um vício de origem: as metas acordadas para os indicadores, FEC e DEC, baseadas em medidas desses indicadores durante os dois anos anteriores, não levaram em conta o risco potencial de todos os pontos frágeis e vulneráveis existentes no sistema na época do contrato e, sim, somente daqueles que, eventualmente, apresentaram problemas.
Como as minas, os pontos frágeis e os vulneráveis podem passar dezenas de anos latentes. Estatisticamente, porém, muitos deles originarão blecautes. E o mais importante: geralmente suas causas serão ocasionais falhas humanas, como em Florianópolis, ou eventuais falhas de equipamento, cujas ocorrências podem ser minimizadas, mas jamais eliminadas. Blecautes causados por catástrofes naturais, como grandes enchentes e furacões, serão exceções. Essa percepção falta à Aneel.
Todavia os americanos há muito tempo entenderam a necessidade de eliminar pontos frágeis. Desde 1968, após os grandes blecautes de 65 e 67, as próprias empresas do setor elétrico mantêm um conselho, o Nerc (North American Electric Reliability Council), para cuidar especificamente da confiabilidade dos sistemas. Ele desenvolve softwares para identificar pontos frágeis, estabelece padrões de planejamento e operação, fiscalizando o cumprimento destes. No Brasil não temos instituição semelhante. Sem a estrutura necessária e de forma ingênua, a Aneel tenta preencher esse vazio.
Pontos frágeis e vulneráveis, os maiores culpados pelos blecautes, aparecem durante o processo de formação dos sistemas. Assim, desde o início, a Aneel deveria ter elaborado, com as concessionárias, cronogramas para sua eliminação, concedendo, naturalmente, os reajustes tarifários necessários. Fazendo de forma transparente e competente a população colaboraria: quem, direta ou indiretamente, ainda não sofreu prejuízos com blecautes?

Evandro Emilio Mariano da Rocha de Souza Lima, 62, engenheiro pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e doutor pela Universidade Paul Sabatier (França), é professor aposentado da UnB.

evandro.lima@ieee.org



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