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TENDÊNCIAS/DEBATES
O etanol e o futuro
JOSÉ SERRA
Mesmo como gentis anfitriões, cabe dizer a Bush que a melhor contribuição para o impulso do etanol será derrubar as barreiras
A PASSAGEM do presidente
George W. Bush pelo Brasil
aqueceu o noticiário e as expectativas a respeito do etanol como
combustível do futuro. Isso é proveitoso, pois dá um impulso mundial ao
marketing do álcool, biocombustível
pouco agressivo ao meio ambiente e
que não está sujeito aos mesmos entraves políticos e econômicos que envolvem o petróleo.
Os Estados Unidos, contrariando
sua tradicional retórica pró livre-comércio, estão ingressando na era do
etanol amparados em regras que obstruem a formação de um mercado
mundial de biocombustíveis.
A barreira norte-americana ao nosso etanol vai além da tarifa de 14 centavos de dólar/litro; outro tanto é entregue aos produtores, sob a forma de
subsídio. Logo, o tamanho da barreira
final é da ordem de 30 centavos de dólar/litro, montante próximo ao custo
de um litro do álcool brasileiro. Ou seja, proteção de 100%! A razão é óbvia:
a produção norte-americana de etanol, baseada no milho, é muito mais
custosa que a nossa, baseada na cana-de-açúcar. Isso ocorre apesar da supervalorização cambial brasileira,
que encarece muito as exportações.
Assim, mesmo como gentis anfitriões do chefe de Estado de um país
amigo, cabe mencionar ao presidente
Bush que a melhor contribuição para
o impulso do etanol no seu país e no
mundo será derrubar essa barreira,
mesmo gradualmente. Claro que há
resistências domésticas de produtores e políticos de lá, mas em que país
do mundo não as há?
O protecionismo tradicional dos
países desenvolvidos não é o único
entrave ao funcionamento de um
mercado globalizado para o etanol. Os
importadores não querem se sujeitar
a uma oferta instável. O Japão, por
exemplo, não mudará a matriz energética (elevando a 10% a participação
do álcool em tanques de gasolina)
sem toda a garantia de abastecimento
seguro. A atual função de produção da
agroindústria da cana, permitindo a
mudança do álcool para o açúcar (e vice-versa), segundo as condições de
mercado, favorece a incerteza.
O ingresso de capital estrangeiro
nos canaviais brasileiros poderá contribuir para maior garantia de oferta
do produto no mercado externo, segundo intenção de alguns investidores de focalizar a produção unicamente no álcool. Funcionariam como
elemento de estabilização da oferta.
Há pelo menos uma convergência
entre as intenções de Bush e o Brasil.
Ele quer espalhar a produção de etanol no mundo, menor dependência
de um produtor quase único (nós) e
maior concorrência na formação de
preços. Isso é conveniente para o Brasil, pois ajudaria a desenvolver o mercado internacional para exportações.
De mais a mais, ante as condições de
clima, solo e disponibilidade de terras, nem a América Latina nem a África ou a Ásia poderão desbancar o Brasil na linha de frente da produção
mundial. E os EUA mal conseguirão
acompanhar o crescimento de sua demanda interna projetada, sem chance
de virarem grandes exportadores.
Já o Brasil vai continuar a produzir
o álcool (e o açúcar) mais barato do
mundo. E pode crescer mais ainda.
Hoje, há 7 milhões de hectares de cana, mas se sabe existir no país cerca
de 90 milhões de hectares adicionais
de terras facilmente cultiváveis, das
quais 25 milhões adequadas para cana-de-açúcar. Dobrando a produtividade na produção de álcool por hectare em dez anos, com melhoria de rendimento e uso dos restos vegetais, a
produção poderia ser multiplicada
por oito. Basta investir em tecnologia.
O etanol é um sucesso que os brasileiros têm direito de comemorar, até
porque não veio de graça. Os subsídios chegaram a cerca de 30 bilhões
de dólares desde os anos 70. Hoje são
zero. A tecnologia nacional teve papel
importante para a afirmação do biocombustível verde-amarelo. Por
exemplo, graças às melhorias genéticas do IAC (Instituto Agronômico de
Campinas, do governo de São Paulo),
a produção física de cana por hectare
aumentou 40% em 20 anos. Hoje há
pesquisadores do IAC em Goiás, Tocantins, Alagoas e Minas Gerais tratando de inovações nas áreas da cana.
Em São Paulo, tomou-se iniciativa
essencial ao futuro do etanol no Brasil: a Fapesp (Fundação de Amparo à
Pesquisa), que recebe 1% do ICMS estadual, está preparada para coordenar um grande programa de pesquisas sobre o etanol, com iniciativa privada e agências federais, em várias
frentes, da tecnologia de máquinas e
equipamentos ao desenvolvimento
da alcoolquímica, do melhoramento
das plantas (mais energia, menos sacarose) à fermentação do bagaço de
cana e outros resíduos. O programa
inclui pesquisas sobre os impactos sociais e ambientais. O investimento total ultrapassa 150 milhões de reais, a
maior parte bancada pela Fapesp.
São Paulo produz quase dois terços
do álcool (e do açúcar) do país. A cana
ocupa mais da metade das lavouras do
Estado (excluídas as pastagens). Trata-se de concentração excessiva. Gera
renda, mas acena com os riscos da
monocultura. Será preciso investir no
aumento da produtividade e fazer alcooldutos, mas levar a expansão adicional dos cultivos a outros Estados.
Acima de tudo, é essencial garantir
as condições ambientais que cercam a
cana-de-açúcar. Neste ano, São Paulo
terá plantado 4,2 milhões de hectares
de cana. Em pelo menos 2,5 milhões
de hectares (10% do território paulista) as colheitas serão realizadas mediante queimadas! É uma aberração
ecológica e um atentado à saúde das
pessoas. Será dever de todos nós, governo e não governo, produtores e
não produtores, corrigir essa distorção, com coragem, firmeza e sabedoria. Afinal, uma das principais razões
de ser do etanol é assegurar um convívio amigável com o meio ambiente.
JOSÉ SERRA é o governador do Estado de São Paulo.
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