São Paulo, sexta-feira, 09 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A violência em ações policiais

PAULO DE MESQUITA NETO

O número recorde de mortes em ações policiais registrado em 2003 e o brutal assassinato do dentista Flávio Ferreira Sant'Ana por policiais militares recolocam mais uma vez no centro das atenções a questão da violência em ações policiais no Estado de São Paulo.
Em 1995, o governo do Estado passou a registrar e divulgar regularmente o número de pessoas mortas e feridas em ações policiais. No mesmo ano, criou a Ouvidoria de Polícia, que passou a receber e acompanhar a investigação de denúncias de crimes e irregularidades envolvendo policiais. No ano anterior, foi implementado o Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (Proar), por meio do qual a Polícia Militar passou a monitorar o equilíbrio psicológico e emocional dos policiais envolvidos em ocorrências com morte e a oferecer-lhes assistência e tratamento.
Graças a essas ações, o Estado de São Paulo dispõe hoje de dados e informações para começar a analisar a natureza, a dimensão e as causas da violência em ações policiais. O governo estadual e as polícias dispõem de condições mínimas para formular uma política de prevenção da violência na atuação de policiais, que deve incluir ações punitivas -sem se limita a elas-, visando promover um estilo de policiamento que alie eficácia e eficiência na prevenção e na investigação do crime ao respeito à lei e aos direitos humanos.
O governo do Estado e as polícias desenvolveram uma série de ações para modernizar a organização e aperfeiçoar o serviço policial nos últimos dez anos. Entre elas, é importante destacar aquelas relacionadas à informatização dos registros e do mapeamento de ocorrências criminais, policiamento comunitário, delegacias legais, gestão pela qualidade, procedimentos operacionais padrão, cursos de direitos humanos, treinamentos para o uso da força e fortalecimento das corregedorias. Tais ações, entretanto, não foram implementadas de forma articulada, consistente e continuada e tiveram alcance e impacto limitados.
Exemplo da descontinuidade na área da segurança pública foi a Comissão Especial para Redução da Letalidade em Ações Policiais, reunindo representantes do governo, polícias, ouvidoria, sociedade e universidade, instalada no início de 2001, mas desativada após a mudança na direção da Secretaria de Estado da Segurança Pública, no início de 2002.
Só em 2003, 975 pessoas foram mortas por policiais. É o número mais alto registrado nos últimos dez anos. No mesmo ano, 126 policiais foram mortos. Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, que têm uma população sete vezes maior e um efetivo policial cinco vezes maior que o do Estado de São Paulo, 297 pessoas foram mortas por policiais e 51 policiais foram mortos em confronto no ano 2000.
A polícia e os governantes são rápidos em atribuir o aumento da letalidade em ações policiais ao crescimento da violência na sociedade, ao aumento da violência contra os policiais e até mesmo à intensificação das ações da polícia. O problema com essas explicações é que a letalidade em ações policiais no Estado aumentou em 2002/2003, enquanto os números de homicídios, de policiais mortos e de prisões efetuadas caíram.


Está mais do que na hora de o governo, a polícia e a sociedade reconhecerem os interesses comuns, unirem forças
Organizações da sociedade civil e centros de estudos e pesquisas já demonstraram sua disposição de colaborar com o governo e a polícia na constituição de um sistema permanente de monitoramento e avaliação da atuação da polícia, de mapeamento e prevenção da corrupção e violência policial, bem como de mapeamento e promoção de estilos de policiamento e práticas policiais que atendam efetivamente às expectativas da população. Essa é a única forma de dar mais transparência ao trabalho da polícia, reduzir a violência e a letalidade na sua atuação e reduzir a desconfiança e a distância entre ela e a sociedade.
A persistirem os altos índices de letalidade em ações policiais, nem mesmo a redução da criminalidade no Estado conseguirá melhorar a imagem da polícia e aumentar a confiança da população na instituição. Diante de casos freqüentes e graves de violência e corrupção envolvendo policiais, reduções das taxas criminais serão provavelmente percebidas como resultados de outros fatores, e não do trabalho da polícia.
A desconfiança da sociedade com relação à polícia pode interessar a algumas empresas de segurança privada, mas não interessa à maioria da sociedade e da polícia. Está mais do que na hora de o governo, a polícia e a sociedade reconhecerem os interesses comuns, unirem forças e desencadearem ações conjuntas para enfrentar de vez o problema da violência em ações policiais, com o objetivo de interromper e reverter a curva ascendente de mortes nessas ações e fazer com que as pesquisas de opinião passem a registrar que a maioria da população tem mais confiança na polícia do que medo dela.
A reativação e o fortalecimento da Comissão da Letalidade poderia ser um passo importante nessa direção.

Paulo de Mesquita Neto, 42, doutor em ciência política pela Universidade de Columbia (EUA), é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Paul Singer: Salário mínimo, a oportunidade

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.